texto de Leandro Luz
O nome de Helena Solberg ainda hoje é encarado como sinônimo de resistência e segue associado ao Cinema Novo nos textos de apresentação de sua biografia e nas publicações especiais dedicadas aos célebres anos 1960 e 1970 do cinema brasileiro. O que “Um Filme Para Beatrice” (2024) faz perceber é que a alcunha de “única cineasta brasileira a ter uma produção expressiva neste período” parece apequenada diante de uma carreira tão inspirada e surpreendentemente coesa.
A “surpresa” não é por uma condescendência vazia da minha parte, mas porque é difícil apontar muitos outros cineastas da sua geração no Brasil que persistiram trabalhando por tanto tempo e com tanto afinco basicamente em torno de uma única grande questão, viajando o mundo para buscar as melhores personagens e as histórias mais excepcionais sem jamais se desconectar com a realidade de seu país. E não pense que perseguir um único assunto seja um demérito, sinônimo de repetição aborrecida. Muito pelo contrário. Grandes cineastas do mundo passam uma vida inteira remoendo as mesmas obsessões: Yasujirō Ozu dirigiu filme atrás de filme sobre as relações familiares e a diferença geracional; Eduardo Coutinho insistiu por mais de 30 anos em filmar o brasileiro comum e as suas contradições; Hong Sang-soo propõe ano após ano variações (temáticas e de estilo) mínimas diante de dilemas afetivos do cotidiano.
Solberg dirigiu, até o momento, 18 filmes, entre curtas, médias e longas-metragens. Filmou nos Estados Unidos e, extensamente, na América Latina. Também produziu ficção, mas a sua veia artística sempre residiu mesmo no fazer documental. Não obstante, em todas essas pequenas partes que formam o todo de sua filmografia, Solberg mergulhou nas dores e nos desafios da mulher de seu tempo. Verdade seja dita, um mergulho que promoveu um deslocamento por oceanos diversos: a análise do comportamento da classe média em “A Entrevista” (1966), o esquadrinhamento das condições da mão de obra feminina como força de trabalho na América Latina em “A Dupla Jornada” (1975), a busca pela identidade (da criatura e da criadora) em “Carmen Miranda: Bananas Is My Business” (1994), até chegar no revisionismo de “Um Filme Para Beatrice”, que estreou na programação do Festival É Tudo Verdade.
O novo trabalho de Helena Solberg parte da pergunta “Como vão as mulheres no Brasil?”, feita por uma jornalista italiana, e se refrata em muitas possibilidades. Dentre os caminhos que percorre, a diretora cruza com os pensamentos irradiados por, entre outras pessoas, Heloísa Teixeira, Helena Vieira e Anielle Franco. Esta última tem um papel fundamental. Eu falava da capacidade da Solberg em percorrer o mundo e se manter conectada com as suas raízes e com os assuntos caros ao Brasil e, coincidentemente ou não, “Um Filme Para Beatrice” tem em seu cerne uma inquietude espantosa que se manifesta de diversas maneiras, entre elas por meio da memória de Marielle Franco, e a presença de sua irmã funciona como um pêndulo para o filme. Toda vez que o debate proposto flerta com a vulgaridade, Solberg coloca a narrativa nos eixos com a ajuda de Anielle Franco. Quando o diálogo leve e solto entre Solberg e Heloísa Teixeira, apesar de divertido, periga se perder em devaneios excessivos, é ela novamente que dá o sinal para que a diretora conduza o olhar do público de volta para as questões mais atuais e pungentes que envolvem a necessidade de uma luta mais coletiva das mulheres hoje.
As conversas entre a diretora e as suas interlocutoras, contudo, estão longe de ser a parte mais inventiva e interessante. Na verdade, boa parte desses diálogos e, por vezes, monólogos são mornos e desviam o assunto do que realmente faz vibrar em “Um Filme Para Beatrice”. No catálogo organizado em virtude de uma retrospectiva de sua obra no CCBB, Helena Solberg, remetendo a uma antiga entrevista sua, escreveu o seguinte: “A ideia de uma retrospectiva dos meus filmes me dá um certo medo. A ideia de remoer o passado, de rever filmes que estão há anos guardados e que refletem quem eu era naquela época, pode ser uma experiência perturbadora”. Na sequência do texto, ela reflete: “Agora percebo como o tempo nos faz mudar nossa percepção dos fatos. Hoje, com muito mais tranquilidade, vejo uma retrospectiva como um privilégio, uma oportunidade de autoconhecimento, com distanciamento crítico e, por que não, humor. É curioso poder examinar aquela criatura que era eu, com suas idiossincrasias e obsessões, inserida em diferentes momentos da realidade que me cercava, e da qual eu queria participar e examinar em busca de respostas”. É com esse estado de espírito que Solberg molda o seu novo filme.
“Um Filme Para Beatrice” propõe um passeio sublime pela carreira de Solberg, (re)apresentando filmes empoeirados de sua filmografia, muito pouco assistidos pelas novas gerações (e pelas velhas também, diga-se de passagem). As montadoras Ana Paula Carvalho e Marilia Moraes realizam um bom trabalho ao lado de Solberg juntando pedaços de filmes e revelando uma unidade incontestável na obra de sua autora. As imagens e os sons de “Meio-dia” (1970), por exemplo, explodem de nitidez e pertinência hoje, ainda que tenham sido concebidos nos anos de chumbo da ditadura militar. É impossível ouvir (bem alto, numa sala de cinema) e não se arrepiar com a voz de Caetano Veloso, acompanhado pel’Os Mutantes em uma de suas mais marcantes performances no auge da Tropicália, que instaura o clima perfeito para a rebeldia das crianças no curta-metragem.
Em outro momento inspirado, a cineasta escolhe comentar a sua infância. Filha de uma mãe muito católica e de um pai norueguês que, segundo ela, “ajudava a equilibrar a carolice materna”, Solberg foi educada em uma escola de freiras e examina a importância dessa convivência para o desenvolvimento posterior do seu ativismo feminista – e para o seu cinema, uma vez que logo em seguida somos apresentados a alguns belos planos de “Vida de Menina” (2003), longa-metragem ficcional de época baseado no diário de Helena Morley, uma garota de província que viveu em Minas Gerais no final do século XIX e que, entre outras “ousadias”, questiona o padre do vilarejo a respeito do “parentesco” entre o homem e o macaco.
Dada essa ruminação da própria carreira, não me parece completamente leviano comparar “Um Filme Para Beatrice” com “As Praias de Agnès” (2008) ou “Varda por Agnès” (2019), de Agnès Varda. Helena Solberg, assim como a cineasta franco-belga, aproveita de sua maturidade para fazer um cinema autorreflexivo, apostando em processos muito livres, sem qualquer pretensão de chegar ao fim com todas as respostas prontas. A liberdade que exala do filme não se deve apenas às declarações contestadoras e afirmativas das pessoas convidadas para o diálogo, mas principalmente da atitude de Solberg, que não se acanha em recorrer a formatos díspares – o filme concilia película com digital, registros de baixa qualidade e fotografia digital de altíssima resolução – para demonstrar, ainda assim, a harmonia avassaladora de seu cinema. Solberg, historicamente espremida entre os homens do Cinema Novo, com este filme confirma que a sua carreira seguiu um trilho muito particular e independente, sempre respirando curiosidade e a mais fina rebeldia.
– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.
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