entrevista de Pedro Salgado, especial de Lisboa
“As canções do meu disco de estreia se beneficiaram de alguns anos de aprendizagem e da produção dos dois EP’s. Nesses trabalhos, tive ajuda na finalização do processo mas, no novo disco, a produção é só minha. Por isso, estas músicas cresceram e ganharam com a espera porque levaram com a minha prática e as minhas novas referências, apesar da maioria delas ter sido quase toda composta no período da pandemia. Julgo que obtive um resultado de que gosto e com o qual me identifico”, conta-me Ana Lua Caiano durante uma conversa franca e reveladora, pelo google meet, a poucos dias do lançamento de “Vou Ficar Neste Quadrado” (2024), o seu álbum de estreia (após dois EPs festejados e vários singles).
“Vou Ficar Neste Quadrado” reflete os sentimentos que Ana viveu durante a pandemia, algo que a cantautora e multi-instrumentista portuguesa volta a reforçar: “Há muitas canções compostas com base na reflexão sobre questões que se tornaram relevantes durante o covid-19 ou que não eram assim tão importantes antes do surto. O medo de certas coisas e o fato de muitas pessoas não terem tido esse tipo de sentimentos, resultaram num pensamento relativo a esse estado de espírito”.
Editado pelo selo alemão Glitterbeat (ao qual Ana agradece a projeção internacional que lhe tem proporcionado), “Vou Ficar Neste Quadrado” é um excelente aprofundamento da sonoridade que a caracteriza, unindo a música popular portuguesa e a eletrônica com recurso às loop stations e aos sintetizadores. O trabalho evidencia uma artista atenta às lições do passado, mas lançando-se as premissas do futuro e é abrilhantado pela sua sagacidade lírica e por boas combinações melódicas e harmônicas. No álbum, também é possível constatar a introdução de novas soluções rítmicas (destacando-se o uso de sons de copos, fitas métricas e imitações de código de morse, entre outros), a utilização da voz como instrumento e o aumento da componente eletrônica e da pegada dançante.
O disco contém vários pontos de interesse, mas duas faixas merecem um destaque especial pela sua força lírica e musical. O primeiro single, “Deixem O Morto Morrer”, que inclui a participação do músico brasileiro Ely Janoville (tocando um par de flautas), é marcado por um refrão grudante e alude ao sofrimento provocado pela morte de um homem. Com o avançar da canção a tristeza é ultrapassada por uma batida vibrante que dá um novo sentido à música. A minimalista e frenética “O Bicho Anda Por Aí” (que aborda uma personagem hipocondríaca e os pensamentos que a afligem) assenta a sua eficácia numa tônica insistente com laivos eletrônicos e consuma-se no refrão: “Não toques aqui não toques ali / põe as mãos para baixo para resistires / não coces a cara nem os teus cabelos que, ai, o bicho anda por aí”. Segundo Ana, a canção “reflete o medo que subitamente todos sentiram com o eclodir da pandemia, porque havia muita gente que nunca o tinha sentido ou pensado no assunto, mas agora faz parte da vida das pessoas e elas têm mais cuidado”. E expressa um desejo: “Escrevi ‘O Bicho Anda Por Aí’ em 2020 e espero que hoje, pelo fato de haver um distanciamento, a música possa ser olhada de uma forma catártica relativamente ao que aconteceu”.
Os clipes do novo trabalho (maioritariamente assinados pela irmã Joana Caiano) continuam a exprimir uma dualidade apreciável e atribuem significados particulares às músicas. No vídeo da referida “O Bicho Anda Por Aí” transmite-se algum desconforto ao espectador, apresentando campos de tênis, bancadas de estádios e piscinas públicas (que costumam estar repletos de pessoas), habitados por figuras estranhas. Já no clipe da faixa título, Ana Lua Caiano alterna momentos em que dança animadamente com fases de aparente resignação. A artista define o momento com igual ambiguidade suscitando a interpretação livre: “Pode significar a vontade de sair de um quadrado e imaginar-se fora dele ou também poderá constatar que nunca sairá dele”.
Relativamente ao acolhimento do disco, a artista relativiza o seu impacto e destaca o prazer que retirou da sua elaboração: “O aspeto principal é que gostei imenso de fazê-lo e estava ansiosa por lançá-lo. Se as pessoas escutarem o álbum e assistirem aos shows fico muito contente, porque é um sinal de que estão a ouvir as músicas e a interpretá-las à sua maneira. É fundamental que faça sentido para mim. Depois, cabe a cada um decidir se gosta ou não”.
Numa altura em que se prepara para apresentar ao vivo o seu álbum de estreia com shows agendas em Porto e Lisboa, a possibilidade de atuar no Brasil parece tomar forma. “Vou fazer muita força para tocar aí este ano e existem boas hipóteses de que possa acontecer. Se não for agora será em breve. No entanto, tudo indica que atuarei no Brasil em 2024”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Ana Lua Caiano conversou com o Scream & Yell.
Porque escolheu o título “Vou Ficar Neste Quadrado” para o seu álbum de estreia?
O nome está relacionado com a faixa-título do disco e essa canção fala um pouco sobre uma pessoa que fica no seu sítio e depois tenta imaginar como sair do quadrado. E o quadrado pode representar a rotina. Existe uma teoria situacionista segundo a qual cada um de nós tem a sua forma geométrica na cidade. Porque cada pessoa tem os pontos que frequenta mas, é claro, existem profissões diferentes. Se calhar a minha rotina já não é assim tão quadrada e está mais espalhada (risos). Mas, na maior parte do tempo, cada atividade tem a sua característica e um local específico. Quando eu andava na escola de jazz do Hot Clube de Portugal ia seguidamente para a escola de Belas Artes, depois passava pelo jardim e finalmente chegava a casa. A forma geométrica que resultava dessa rotina era um quadrado. Todos nós temos um quadrado, o qual passa por ir a um determinado café, ao trabalho e depois existem pequenos desvios quando vamos ao teatro, a um show ou viajar. E no final do ano há sempre uma forma que fica. Por isso, é uma reflexão sobre esta rotina e se queremos sair dela ou não. Está relacionado com o pensamento, nestes pontos que fazem parte da vida de cada um, porque todos temos os nossos quadrados. Acaba por ser uma alusão a essa teoria.
O seu disco revela ousadia e é encorpado devido ao incremento da eletrônica e da introdução de novas bases rítmicas. Sente que conseguiu colocar no trabalho tudo o que pretendia e a define?
Sim. Nos outros trabalhos as canções eram mais homogêneas do início até o fim. E como fiz um álbum, tive mais possibilidades de explorar diversas coisas em músicas diferentes. Sinto que há uma linguagem que une o disco mas, ao mesmo tempo, tenho uma canção experimental, outra que é um pouco tradicional e ainda existem algumas que vão pegar em elementos da música concreta, no sentido em que são mais experimentais, e não se trata propriamente de uma canção. Isso permitiu-me explorar as diferentes faixas. Por outro lado, comecei a utilizar neste álbum algo que já tinha usado na música “Vou Abaixo Volto Acima”, do EP “Se Dançar É Só Depois” (2023), que era a utilização da voz como instrumento e comecei a recortá-la e a utilizá-la como um ritmo ou sintetizador. Eu não fiz isso no EP “Cheguei Tarde A Ontem” (2022) e acabei por concretizá-lo na última canção que produzi do meu disco anterior. Portanto, tornou-se um elemento que aprofundei ainda mais no (novo) álbum e usei em faixas como “Vou Ficar Neste Quadrado” ou “O Bicho Anda Por Aí”. Há muitas canções em que a voz deixa de estar somente ligada à letra e torna-se um instrumento. Por vezes, surgem coisas novas que são influenciadas pelo que descobrimos ou elementos que apareceram por uma determinada razão. Eu ouvi muito os Baiuca (grupo espanhol que cruza a música tradicional galega e a eletrônica) e gosto de escutar coisas meio loucas. Adoro o formato canção, mas agrada-me explorá-lo. O fato de apreciar música experimental também se reflete no meu trabalho. Recordo, igualmente, uma cantora francesa de que gosto e está ligada aos sintetizadores modulares, Zaho de Sagazan, e o novo disco do Legendary Tigerman (“Zeitgeist”, de 2023) não saiu a tempo de me influenciar, mas adorei esse trabalho. Ele é um roqueiro, mas introduziu uma parte eletrônica que resultou muito bem. Estou sempre atenta e vou escutando o que posso. Por vezes, não consigo perceber se foi uma influência direta ou se me inspirou. Também ouvi muito Martin Rev que tem um cunho mais cru, experimental e meio Velvet Underground. É aquilo com que me vou deparando e me apaixona (risos). Mas, estou muito contente porque neste disco explorei vários aspectos diferentes.
No álbum, você incluiu uma versão de estúdio e outra ao vivo para a música “Deixem O Morto Morrer”. Foi a maneira que encontrou para enfatizar a sua mensagem ou pretendia fomentar novas leituras da canção?
Julgo que é um pouco das duas coisas. Por um lado, para dar mais impacto à canção, já que foi o primeiro single, e escolhi-o por ser uma música simultaneamente triste e alegre e eu gosto de criar o incômodo de não se perceber se é para rir ou chorar (risos). Por outro lado, fiz uma residência artística com um grupo vocal, que acabou por aparecer no disco. No álbum, sou eu quem faz as vozes todas mas, quando tive essa experiência com o coro Essence Voices, cada um deles cantou uma parte que eu normalmente interpreto. Isso trouxe uma nova vida à canção e também teve a intenção de mostrar o lado mais cru da faixa. As minhas músicas, normalmente, têm muita produção e bastantes elementos e há várias canções com diversos sons. A ideia era despojar a faixa e torná-la mais sóbria. Desde o começo que eu quis incluir uma versão acappella e sinto que as vozes e as harmonias são um elemento fundamental da minha música. Portanto, não queria que fosse só eu sozinha a cantá-la. Quando me reuni com o coro tudo fez sentido e já estava a planejar que ia sair algo que eu desejava. Mas, também pode gerar outras interpretações. Esse aspecto das canções ganharem novos significados nunca me fez pensar que a música era algo feminista e, subitamente, o clipe trouxe outra dimensão. Todas as camadas que existem podem carregar novos sentidos e isso é enriquecedor. Se calhar a versão ao vivo possibilita uma interpretação diferente e o vídeo, por incluir aquele grupo de mulheres, poderá sugerir outras leituras.
Você atuou recentemente na final do Festival da Canção 2024, durante um medley evocativo dos 50 anos da revolução de 25 de Abril, cantando “Que Amor Não Me Engana”, de Zeca Afonso, e que contou com as participações de Samuel Úria, Alex D´Alva Teixeira, do músico brasileiro Luca Argel e de Paulo de Carvalho. O que representou para si atuar ao vivo na televisão portuguesa com esses músicos e o fato de participar na celebração?
Foi uma experiência incrível, porque são músicos que eu admirava. Eu já tinha tocado duas ou três canções em Lisboa com o Luca Argel, no Festival Termómetro, em 2023. O Luca era meu conhecido, mas os outros não. Foi incrível poder atuar com eles e interpretar essas músicas ligadas ao 25 de Abril de 1974. É importante continuar a cantá-las, porque nenhuma luta está verdadeiramente terminada e percebemos que ainda é necessário travar muitas batalhas para assegurar a democracia. Portanto, foi bastante importante estar com artistas que me acolheram tão bem e me ensinaram tanto e puseram-me à vontade para reinterpretar aquela faixa do Zeca Afonso. Cantar com eles e o fato do Paulo de Carvalho ter cantado uma música tão importante para celebrar o 25 de Abril como é “E Depois Do Adeus”, foi mesmo um momento muito especial.
Em 2023, você desenvolveu uma atividade intensa com participações em festivais portugueses como o NOS Alive e o Imaterial, diversas atuações nacionais e no estrangeiro e presenças em festivais internacionais de indústria. Qual foi a aprendizagem que retira dessas experiências e em que medida essa dinâmica a anima para o seu trabalho presente?
Acho que foram muitas aprendizagens porque, apesar de tudo, não comecei a tocar em palco assim há tanto tempo. Sinto que foi essencial para mim atuar muitas vezes, rodar e agora estou mais à vontade. Em cada mês que toco sinto que isso é deveras importante e começo a interagir melhor com os diversos públicos. No ano passado passei em locais muito diferentes. Tanto fiz espetáculos em pequenas terras com 30 pessoas a assistir como fui a festivais repletos de gente que não conhecia e em que estava sozinha em palco. São todos incríveis à sua maneira, porque nos eventos maiores temos de captar as pessoas que estão longe, já que é mais fácil haver interação com aquelas que estão mais perto. Há situações em que não as vejo, como num teatro, porque está escuro ou num clube onde estão a dançar ao pé de mim, os cenários são diferentes. Este ano estarei mais segura em cada um deles, porque tive oportunidade de poder experiencia-los no ano passado. Estou muito ansiosa de continuar a poder crescer, aprender com as pessoas e mostrar a minha música a quem não me conhece ou a quem já me ouviu.
Pretende continuar a apresentar a sua música no formato “one-woman band” ou antevê a possibilidade de alargar a base rítmica com outros músicos e estabelecer novas parcerias?
É sempre uma possibilidade em aberto. Neste momento, sinto que continua a fazer sentido este projeto, mas eu gosto bastante de colaborar e já atuei com um coro (Essence Voices) e fiz outro show em que tive umas adufeiras a tocar comigo. Esses concertos foram muito especiais e as parcerias acrescentaram muito ao espetáculo. Para já, não antevejo um futuro em que sejam sempre as mesmas pessoas, até porque há imenso espaço e para mim ainda faz sentido tocar sozinha. Mas, espero colaborar este ano em certos shows com outros músicos, porque ensinam-me muito. Eu toco adufe e, de repente, umas adufeiras da Serra da Estrela têm uma prática, sabedoria e olham para a canção de forma diferente, porque tocam ritmos que eu não imaginava. Esse tipo de aprendizagem que se obtém com as pessoas e com as diferentes experiências também é importante. Acho que em 2024 vou ter várias oportunidades para fazer colaborações.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Tiago Nuno.