texto de Davi Caro
“Um povo sem memória é um povo sem futuro”, diz o famoso epíteto. Trata-se de uma frase que ressoa como um lamento na história da América Latina, que ainda se mostra desastrada e desinteressada em lidar com seus fantasmas: afinal, num país como o Brasil – onde se elege aqueles que glorificam torturadores e multidões defendem uma ideia distorcida de “intervenção militar” – ainda nos mostramos incapazes de reconhecer os momentos mais macabros de nossa história com a devida profundidade e senso de importância. Se aproxima a data que marca os 60 anos do início de nossa Ditadura Militar (que se estendeu de 1964 a 1985), um capítulo que se prova cada vez mais relevante para que se entenda muito do que existe de mais sombrio no âmago destes tristes trópicos, apesar de tamanha ignorância e desinformação ainda reinarem nos corações e mentes de tantos. Basta olhar para um de nossos principais vizinhos para testemunhar uma situação bastante semelhante, ainda que fundamentalmente distinta.
24 de Março marca o Dia da Memória, Verdade e Justiça na Argentina, e relembra a deposição da Presidente Isabel Perón, em 1976, por uma junta militar apoiada pelos EUA que tinha o tenente general Jorge Rafael Videla à frente, iniciando um período ditatorial (formalmente chamado de “Processo de Reorganização Nacional”) que perduraria até 1983, após o fiasco nacionalista da Guerra das Malvinas. O processo de redemocratização também viu a expansão das atividades da ONG Abuelas de Plaza de Mayo, que se formaram em 1977 com o objetivo de localizar, em meio aos cerca de 30 mil desaparecidos durante a Ditadura, os cerca de 500 bebês que teriam sido tirados de seus pais, considerados subversivos pelos militares, e entregues a pais adotivos, ou abandonados. É nesse ínterim que “A História Oficial” (“La Historia Oficial”, 1985) se passa. Dirigido por Luis Puenzo, o longa-metragem iniciou sua produção numa Argentina que aprendia a sonhar mais uma vez, após a eleição democrática do civil Raul Alfonsín, e retrata de maneira dolorida e lindíssima o drama de milhares de famílias, representadas pelas avós da organização da Praça de Maio, e põe o dedo na ferida de um momento do qual a nação argentina nunca se esquecerá, e que ainda permanece desconhecido para boa parte dos brasileiros – ainda que as circunstâncias que o originaram sejam muito familiares.
O filme discorre sob a perspectiva da protagonista Alicia (vivida por uma fantástica Norma Alejandro): uma professora escolar de classe média, a personagem é apresentada como esposa dedicada a seu marido, o oficial governamental Roberto (Héctor Alterio) e uma mãe devota à filha adotiva, Gaby (Analía Castro). Assim como muitos em seu círculo social, Alicia se mostra alienada aos horrores que ocorreram pelas mãos de seus governantes e seus subordinados, incluindo as torturas, exílios e desaparecimentos aos quais muitos foram sujeitos.
Embora sua visão de mundo seja desafiada regularmente por seus alunos e até mesmo por um colega, sua realidade idílica onde a prisão é algo destinado somente a criminosos culpados é realmente balançada com o relato de sua amiga, Ana (Chunchuña Villafane), recém-chegada da Europa, que conta sobre sua experiência ao ser sequestrada em seu apartamento, capturada, torturada e estuprada por homens do governo por causa de associações com um homem com quem morou, antes de se exilar. Em sua descrição do cárcere, Ana também se refere a mulheres grávidas, que eram retiradas de suas celas apenas para serem devolvidas sem seus filhos – o que desperta questionamentos profundos na professora: embora amorosa em relação à filha, Alicia nunca procurou ter real consciência da origem da menina. Inúmeras tentativas de obter informações junto ao marido são rebatidas, consideradas irrelevantes e ignoradas como caprichos, e a levam a buscar saber mais sobre a origem da menina que criou como sua. Sua procura a põe em rota de encontro com as Avós da Plaza de Mayo, que a colocam em contato com Sara (Chela Ruiz), uma das membros da organização que tomam as ruas bradando por justiça e pelo conhecimento dos destinos dos desaparecidos, e que, de acordo com as muitas evidências encontradas, poderia ser a real avó de Gaby. O descobrimento da macabra realidade acaba provocando graves chamados à reflexão por parte de Alicia, que percebe o véu aveludado da ignorância puxado da frente de seus olhos, e se vê questionando a índole do marido à medida que seu envolvimento em uma atrocidade cruel se torna cada vez mais difícil de não perceber.
O maior tesouro de “A História Oficial” reside em seu elenco, e, sem dúvida, principalmente em sua protagonista: poucas vezes se pode ver o tipo de narrativa como a carregada por Norma Alejandro, cuja Alicia vê o castelo de perfeição da classe média alta desabar diante de seus olhos, conforme encara um dilema para o qual não há resposta fácil. A força de sua personagem ao se impor ao marido, conforme o longa se aproxima de seu melancólico e dolorido clímax, é de comover. Héctor Alterio, por sua vez, traduz com perfeição o descaso com o qual seu Roberto enxerga as macabras situações enfrentadas por tantos em seu país, numa espécie de alienação orgulhosa que o distancia até mesmo da própria família de origem, em uma das cenas mais emblemáticas da produção. A pequena Analía Castro se mostra carismática no papel de Gaby, cuja figura existe como um contraponto à gravidade trazida por Chunchuña Villafane, cujo monólogo como Ana é de arrepiar conforme a personagem passa do riso nervoso ao pranto compulsivo, rememorando as bárbaras condições às quais foi submetida pelas autoridades vigentes de então. A cinematografia de Félix Monti faz uso de ângulos e tomadas capazes de falar mais do que mil linhas de diálogo, e a trilha sonora, a cargo de Atílio Zamponi, supreende tanto por suas passagens mais extravagantes quanto por sua sutil ausência em determinados trechos – sem falar, claro, do uso da delicada composição “El País del Nomeacuerdo”, de Maria Elena Welsh, que dialoga com o filme e seu desfecho de maneira quase sobrenatural.
Sobrenatural, inclusive, pode ser uma ótima palavra para explicar a recepção mais do que calorosa concedida a “A História Oficial” ao redor do mundo: além de colecionar vitórias em premiações como os Festivais de Cinema de Toronto e Cannes (com a atuação de Norma Alejandro em especial conquistando nomeações e condecorações), a produção ganhou, em março de 1986, o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, marcando assim a primeira vitória dos argentinos na badalada cerimônia estadunidense – a segunda viria com o também excelente “O Segredo dos seus Olhos” (2009), apesar de uma merecida nomeação haver sido gratificada ao excelente “Argentina, 1985” (2022), que, por sua vez, lida com a mesma herança histórica sinistra do filme de Luis Puenzo. Restaurado em 4K já em 2015, “A História Oficial” (disponível, nesta mesma versão, via Netflix) é um retrato precioso de um passado que, embora distante, nunca deve ser esquecido pelo povo argentino, e latino-americano, como um todo. Afinal, mais do que conhecer a própria história, é necessário entendê-la; talvez assim, a realidade de uma paz “baseada não no esquecimento, e sim na memória; não na violência, e sim na justiça”, como a sonhada pelo promotor Júlio Strassera ao condenar os militares depostos após a restauração da democracia, finalmente se torne verdade. Bem afortunados (e corajosos) aqueles que compreendem o significado carregado por duas palavras tão simples quanto “nunca mais”.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia outros textos de Davi aqui.