texto de Renan Guerra
Herbert Daniel era oficialmente Herbert Eustáquio de Carvalho, jovem mineiro que se aventurou pela luta armada em oposição a ditadura militar no final dos anos 1960. Integrante de organizações paramilitares como POLOP, Colina, VAR Palmares e VPR, Herbert ganhou o codinome de Daniel, uma prática comum na clandestinidade para proteger sua identidade. Um dos braços direitos de Carlos Lamarca, Herbert participou dos treinamentos militares realizados no Vale do Ribeira, em 1969, e era companheiro e amigo de Dilma Roussef e Iara Iavelberg. Vivendo na clandestinidade, ele conseguiu fugir da prisão e das torturas e foi em direção ao exílio em 1974 retornando ao Brasil na década seguinte, sendo considerado o último exilado do regime militar a ser anistiado. Em sua volta, seria militante do PT e ajudaria a fundar o Partido Verde. Abertamente homossexual, Herbert Daniel descobriria a AIDS no final dos anos 1980, se tornando um importante nome na luta por mais dignidade para as pessoas vivendo com HIV/AIDS. Herbert Daniel faleceu em 1992.
É uma biografia e tanto que tentamos resumir em alguns tópicos marcantes no parágrafo acima, mas a realidade é que Herbert Daniel é dessas figuras incríveis que tem uma história tão ampla e tão rica que renderiam diferentes abordagens. A companhia teatral Núcleo Experimental, de São Paulo, optou por transformar toda essa história em um musical denso e doloroso, que perpassa os momentos do Daniel guerrilheiro até o final da vida do sociólogo e ativista Herbert. Com texto, letras e direção geral de Zé Henrique de Paula e música de Fernanda Maia, o espetáculo “Codinome Daniel” é um mergulho numa vida de lutas e de muita coragem.
O espetáculo teatral tem como base central de sua narrativa a pesquisa realizada por James N. Green e publicada no livro “Revolucionário e gay: a extraordinária vida de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão” (Civilização Brasileira, 2018). Para dar conta dessa biografia tão ampla, “Codinome Daniel” segue um fluxo que passeia no tempo de forma muito inteligente: o cenário é uma única sala de apartamento e o elenco se desdobra em diferentes personagens, assim passamos da casa da família de Herbert em Minas, para um aparelho clandestino nos anos 70, para uma sauna gay em Paris nos anos 80, com fluxos que acontecem de forma muito natural e bem estruturada.
Com roteiro coeso e bem alinhavado e com canções que conseguem dar um ritmo bastante único para a peça, dosando as nuances de sofrimento e delicadeza, “Codinome Daniel” se prova uma experiência emocionante para a plateia e isso se dá, especialmente, por algumas atuações bastante contundentes. Herbert Daniel é vivido por Davi Tápias de uma forma bastante surpreendente: para além da entrega emocional e da complexidade dramática do personagem, Tápias consegue captar o gestual e a estrutura corporal de Herbert de forma incrível e natural, tanto que a cada nova canção, ele parece emular de forma bastante certeira o andar, o gesticular e a cadência do personagem real. Vale também destacar a atuação estupenda de Luciana Ramanzini, que em determinado momento da peça interpreta a amiga de Herbet, Dilma Roussef. Sua entrega física e emocional é absurda, a sequência em que ela narra os horrores da tortura é de arrepiar!
Com um trabalho cada vez mais criativo e amplo, o Núcleo Experimental é um importante espaço no teatro paulistano para que outras narrativas sejam contadas, para que histórias esquecidas sejam revistas e para que nomes fundamentais sejam relembrados. Recentemente, o Núcleo havia feito sucesso com os espetáculos “Lembro Todo Dia de Você” e “Brenda Lee e o Palácio das Princesas”, as duas primeiras partes de uma trilogia (com discussões e pontos de vista a respeito de questões sobre HIV/Aids no Brasil, da década de 80 aos dias de hoje) a qual “Codinome Daniel” encerra reforçando a importância de artistas e criadores que nos ajudem a contar outras histórias, de outros modos. A forma como “Codinome Daniel” se apropria do espetáculo musical e entende as potencialidades desse gênero – ao mesmo tempo que o subverte – é algo bastante rico.
“Codinome Daniel” segue em cartaz em São Paulo (ingressos aqui) no Teatro Núcleo Experimental (R. Barra Funda, 637, Barra Funda, São Paulo) até o dia 07 de abril e é uma obra recomendada para aqueles que sabem a importância de não nos esquecermos nunca de quem lutou antes de nós.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.