entrevista por João Pedro Ramos
A palavra “inquietude” deveria vir com uma foto do santista Matheus Krempel no dicionário. Além de ser o frontman da longeva banda de punk rock The Bombers, ele também integra a psychobilly Reverendo Frankenstein, a grunge e recém-formada Crying Pines, além de ser o capitão do estúdio e ponto de encontro da cena independente paulista Porto Produções Musicais. Agora, além de tudo isso e de sua participação no projeto Karaokillers, ele também bota na sua gigante lista de projetos o disco solo “Uma Noite Entre Amigos” (2024), gravada logo após a reabertura pós-pandemia e engavetada desde então.
Diferente dos discos de seus outros projetos, este álbum não tem guitarras rasgadas, bateria incessante ou baixo estoura-tímpanos: em formato acústico e rodeado por amigos, Krempel desfila uma verdadeira viagem por sua carreira e por sua principal banda, The Bombers, em versões intimistas que se assemelham ao embrião de cada canção, segundo ele, compostas todas ao violão antes de ganharem o veneno punk rock. O lançamento deste disco, segundo ele, além de reviver uma noite divertida e que reforçou os motivos pelos quais ele continua a fazer música, é o estopim de um futuro projeto solo com músicas autorais compostas especialmente para o formato dylanesco de voz, violão, atitude e alma.
Conversei com Matheus sobre o novo disco, sua carreira com o The Bombers e todos os projetos que ele desenvolve ao mesmo tempo sem deixar a bola cair:
Vamos começar falando do seu lançamento mais recente, que é seu primeiro disco solo. Como rolou essa ideia e como foi a gravação dele?
Entre 2008 e 2010 rolou um hiato do Bombers. Tudo foi meio traumático pra mim. Decidi que não queria mais ter contato com música e foquei em escrever algumas crônicas, para dar vazão à minha criatividade de alguma forma. Não demorou muito e eu voltei a compor, mas ainda assim não queria mais tocar por conta de todo o estresse que envolve ter banda. Então, após assistir um show do Vic Ruggiero no Bleecker Street, percebi que tudo o que eu precisava era de uma guitarra e cara de pau. Então eu inventei que iria fazer isso… após três apresentações. eu já estava tocando com banda de novo, e daí até voltar com o Bombers foi um processo rápido. De qualquer forma, o clima intimista e as músicas em formato acústico sempre me atraíram. E então, já com o Bombers de volta e tudo o mais, percebi que havia uma cena acústica se formando com Gritando HC, Badke, Álvaro Dutra, Pedroluts, Dom Orione e Felipe Bueno. Eu disse para mim mesmo: “Hey! Também quero fazer isso aí!” Fiz algumas apresentações e achei que seria legal captar esse momento. Marquei um show no meu estúdio, a Porto Produções Musicais, com Pedroluts e Dom Orione, e resolvi gravar a apresentação de todos. Meu amigo Raul Zanardo operou a captação e o resultado ficou muito legal. Pedroluts e o Orione lançaram o deles e eu engavetei o meu. Por que? Porque eu sou muito crítico ao meu desempenho em tudo o que eu faço. O que alivia fazer parte de uma banda, é que se o trabalho ficar uma merda, é culpa do conjunto. Agora se o trabalho fica uma merda, em um formato de violão e voz… Meu amigo… Aí é foda! E eu sei que ninguém nunca fala que o disco X ou Y ficou uma merda. Porque existe essa cultura de peninha do artista independente, onde tudo que é feito com o coração é maravilhoso. Então eu travei. Não queria me expor. Me distanciei deste trabalho por uns 4 anos e um belo dia resolvi ouvir de novo. Para minha surpresa, eu achei que ficou muito legal. Eu achei minha voz ok, o repertório bem diversificado, apesar de um errinho aqui e outro ali… e o principal… a participação do público e o clima de bagunça. O motivo principal de lançar esse disco, veio da vontade de compartilhar esse astral festeiro com todo mundo. A vida anda tão pesada, não é mesmo? Quis contribuir com um pouquinho de alegria.
Me conta um pouco mais sobre como foi escolhido o repertório para o disco. Ele conta com músicas de diversos momentos da sua carreira, né…
Sim sim…Tem um pouco de tudo que já fiz com o Bombers. E isso é tranquilo porque quase todas as músicas do Bombers foram compostas no violão, então não tive trabalho de transpor nada. O repertório foi escolhido com base nas músicas que eu mais estava no clima de cantar naquele dia, como a “29 de Outubro”, inédita. E algumas entraram durante o show. Por exemplo… eu toquei “Without a Trace” do Soul Asylum e no final, o público estava acompanhando com palmas. Eu achei aquele instante muito foda e pedi para não pararem e emendei “Would Do It Again” (do nosso disco “All About Love”), que nem estava no repertório. No final também toquei “Última Estação” (do nosso álbum “Embracing the Sun”), meio que por sugestão do pessoal que assistia o show.
Você pretende retomar essas apresentações solo?
Definitivamente. Quero usar esse disco como pontapé inicial para produzir mais coisas nesse formato e obviamente fazer mais shows.
Voltando um pouco no tempo, o Bombers é uma banda bem longeva, estando na ativa desde o final dos anos 90. Como você resumiria a trajetória da banda até aqui?
Somos uma banda que se diverte criando as músicas que nós mesmos gostaríamos de ouvir. Músicas com refrão, melodias assobiáveis, batidas dançantes e letras que refletem a mentalidade de alguém da nossa idade. Foi assim quando tínhamos 16 anos e segue assim. Obviamente, hoje estamos evoluindo nas temáticas, à medida que nós mesmos estamos todos na casa dos 30, 40 anos. Adoramos nos desafiar a cada disco e adoramos questionar, com os nossos trabalhos e a nossa atitude, todo o status quo do que se espera de uma banda punk convencional. Para quem não é do meio, isso não faz muita diferença, mas para nós é uma delícia. Eu acredito que nessa brincadeira, acabamos criando uma sonoridade bem própria e que no fundo, não passa de uma grande colcha de retalhos, com tudo o que gostamos de ouvir. Eu me orgulho da nossa trajetória meio errante… kamikaze… E principalmente da nossa integridade artística.
Muitas das bandas independentes do cenário brasileiro começam suas carreiras compondo em inglês, para depois assumirem de vez as letras em português como carro chefe. Isso também ocorreu com os Bombers. Porque você acha que essa estrutura português/inglês se repete em tantas bandas? Qual foi o estopim da mudança no caso dos Bombers?
Eu comecei a compor as músicas do Bombers quando eu tinha 16 anos. Eu tinha vergonha de me expor e eu sabia que cantando em inglês, ninguém se ligaria muito nas letras. Assim eu poderia pôr pra fora meus sentimentos sem grandes problemas. No entanto, isso sempre me incomodou. Durante uma época, ali entre 2016 e 2017, eu escrevia umas crônicas sobre o meu dia a dia para o Guitar Talks. De repente os feedbacks foram muito legais e eu percebi que estava me conectando com as pessoas, escrevendo em português.
Foi aí que eu decidi que iria levar essa comunicação para as músicas do Bombers. Para estabelecer uma conexão maior com as pessoas. Foi o fim da vergonha de expor meus pensamentos.
E foi no fim desse receio também que você escreveu o livro “Não Vencer Não É Perder“?
Também! Eu amo escrever. Durante a pandemia, eu escrevi um roteiro para uma live em formato storytelling. A experiência foi tão boa, que eu resolvi aprofundar. Quando eu comecei a escrever, não sabia exatamente o que estava fazendo. Aí lá pela metade, eu achei interessante contar a história da “incrível banda que não fez sucesso” e a minha relação com o Bombers. Todo mundo conta a história dos grandes vencedores, mas ninguém conta as histórias dos, digamos assim, perdedores. E o mundo tem muito mais perdedores do que grandes vencedores. Em uma maratona, correm centenas de pessoas. Só uma é a vencedora. O resto é tudo perdedor. E os perdedores se unem e vão pro bar comemorar (risos). Agora, sem zoeira… Eu usei o livro para contar a minha história, a história dos primeiros 13 anos do Bombers, meus erros, minhas conquistas e principalmente para mostrar que independente de você fazer ou não sucesso, o foco de todo mundo que decide criar música é fazer arte.
Já que você citou o início do Bombers, vamos voltar pra lá: a banda fez parte de uma cena bem efervescente de Santos, de onde o maior “vencedor”, por assim dizer, foi o Charlie Brown Jr. Porém, dos ditos “perdedores”, acho que vocês e o Garage Fuzz são as mais longevas, não? Como era essa cena na época, com tantos nomes surgindo e buscando espaço na cena rock do mainstream, que na época era forte?
Cara… era uma cena borbulhante! Santos tem uns 400 mil habitantes… Se você pegar a população na subprefeitura da Penha (bairro da cidade de São Paulo), tem mais gente que isso. Mesmo assim, toda classe de ensino médio, de todo colégio da cidade, tinha alguém que tocava em alguma banda. Olhando pra trás, é meio que impressionante. Não à toa, Santos se tornou na época cidade obrigatória nas rotas dos grandes shows de punk rock/hardcore. Muito doido pensar que recebemos NOFX, Fugazi, Bad Religion, Madball, Voodoo Glow Skulls, Down By Law, Man or Astroman, Shelter, Dog Eat Dog, Biohazard, Backyard Babies, Satanic Surfers, MxPx, The Donnas, No fun at All, dentre tantos outros na nossa sonífera ilha. Esses shows internacionais geralmente aconteciam durante a semana e aos finais de semana, tínhamos os shows das bandas nacionais e locais. Tínhamos fanzines, programas na rádio FM e nas piratas também. As pessoas se reuniam basicamente nos mesmos lugares e trocávamos flyers de shows, que nós mesmos fazíamos. Saíamos para colar cartaz, com cola de farinha, por todos os postes da cidade. Desbravávamos locais novos para shows o tempo inteiro. Triste ver que hoje isso não existe mais.
Você acha que isso não existir mais impacta na construção de uma cena rock independente mais forte?
Isso não existe por vários motivos. Santos envelheceu. A vida jovem noturna foi expulsa da região da orla da praia e jogada quase que para a entrada da cidade. Infelizmente, o sucesso do Charlie Brown Jr fez um monte de moleque pegar a guitarra para fazer sucesso, e não para fazer arte. De repente todo mundo queria ser o “novo Charlie Brown” e viver de música, e essa frustração acabou desmotivando muita gente que se envolveu com as motivações erradas. Além do desinteresse mundial pelo rock. O que por um lado é ok. Rock é coisa de velho. Punk Rock é coisa de velho. O que mais incomoda é ver que a minha geração não passou o bastão pra frente. Não soubemos incentivar a molecada para continuar fazendo a coisa acontecer. Ainda tem boas bandas, mas que nem se preocupam mais em tocar em Santos. Porque ali, infelizmente, show de banda de rock virou Baile da Saudade. Óbvio que eu não sou o dono da verdade. Sou só um velho bocudo e reclamão.
Voltando ao seu primeiro disco solo: neste álbum, as músicas são de sua carreira com o Bombers. Você pretende lançar autorais solo no futuro?
Com certeza. Na minha cabeça, esse disco meio que me força a dar esse passo. E eu acho ótimo. Além disso, quero trazer coisas do Reverendo Frankenstein, da Crying Pines (que é um projeto meio grunge pop) para os shows e principalmente focar em gravar mais músicas nesse formato. O próximo passo tem que ser um disco de inéditas.
Opa, então chegou a hora de falarmos disso: me conta um pouco mais sobre os outros projetos musicais dos quais você faz parte hoje em dia e como eles são diferentes do Bombers e do seu trabalho solo.
Ah nem é tanta coisa assim (risos)! Além do Bombers e da carreira solo recém iniciada, também sou vocalista do Reverendo Frankenstein. No momento estamos fazendo bastante shows e produzindo músicas para o próximo trabalho. Segue uma linha Psycho Horror Pop Punk. E tem a recém criada Crying Pines. Inicialmente era para ser um projeto solo, mas optei por montar uma banda. Até porque não toco sozinho: sou eu, Alexandre Saldanha (Reverendo Frankenstein/Garotos Podres), Azedo (Trovadores de Bordel) e o Fernando (ex-The Bombers). O som é um grungezinho de Sessão da Tarde com letras em inglês e ainda esse ano deve sair o primeiro disco, que já estamos gravando.
Queria que você falasse um pouco sobre a Porto Produções Musicais, um projeto que você leva há tempos e aos poucos foi se tornando mais do que um estúdio de gravação e ensaios.
A Porto é o estúdio que além de receber bandas para ensaios e gravações, também serve como espaço para shows de bandas iniciantes. Lá ninguém é tratado como estrela do rock (nem mesmo as estrelas) e nem é tratado como lixo. O tratamento lá é de amigo. A privacidade de cada cliente é a prioridade. E não à toa, a maioria acaba virando grandes amigos. Vem sendo extremamente cansativo ter que morar e trabalhar lá. Mas o prazer de poder ajudar a fomentar um cenário, como venho fazendo há longos seis anos, é imensurável. Eu adoro fazer parte disso. É a minha contribuição ao rolê.
Pra finalizar, vamos falar também do futuro do Bombers, né? Quais os próximos passos dos Bombers de Santos?
Mais shows e mais lançamentos! Temos um clipe para estrear que foi dirigido pelo Furukawa (da blackcoffee). Gravamos uma música com o Marzela para o Tributo ao Blind PIgs. E vamos lançar quatro EPs que no final vão se tornar o disco novo. Cada EP será produzido por um integrante em conjunto com a banda e deve contar com 3 faixas cada um. Tudo em português e já em fase de pré produção. Ah, e eventualmente integro o Karaokillers, que é um projeto do Edgar Avian.
Calma, então vamos falar desses quatro EPs aí. O projeto é interessante. Me lembra conceitos que o Kiss e o Molotov, do México, fizeram, com quatro lançamentos que remetem a cada membro. Como vai rolar essa divisão?
Exatamente isso. Inspirado nos discos do Kiss. Cada um trará a sua versão de como gostaria que o Bombers soasse. Um disco solo dentro do Bombers, com a própria banda tocando. Um do Trivela (guitarrista), um meu, um do Signorini (baixista) e um do Junior (baterista).
O vocal vai ser seu em todos ou eles vão poder dar um tostão de suas vozes?
Eu deixei eles livres para decidirem, mas aparentemente eu devo cantar em todos. Estou me esforçando para fazê-los cantarem pelo menos um som nos seus respectivos EPs. No final, vamos selecionar as mais legais e juntar com mais três sons que já estávamos desenvolvendo ano passado e isso vai ser o disco novo. É ótimo exercitar a criatividade.
Karaokiller é mais um projeto para shows e eventos, correto? Me conta como tá rolando. Vi que vocês chegaram a tocar com gente como o Fogaça, do Masterchef e Oitão.
Sim! Existem formações diferentes, para eventos diferentes. Eu eventualmente integro uma versão mais voltada para o punk rock. Mas é um processo genial e muito legal do Edgar que exige que a gente saia da zona de conforto, aprendendo a tocar em média 50 músicas para apresentações que geralmente variam entre 30 minutos até 1 hora e meia. De Avril Lavigne e Paramore a Buzzcocks e tudo o que tem no meio disso. A banda disponibiliza o repertório e as pessoas escolhem a música que querem cantar. É bem desafiador.
Então pra não perder a viagem, queria que você fechasse a entrevista deixando pra gente algumas recomendações de bandas e artistas independentes que aparecem no seu radar por aí.
Tem muita coisa legal acontecendo: tem o Edgar e a Lua, Flusser, Two Kims, Alfa Zulu, Los Tres… Tudo banda iniciante e com muita vontade de tocar e produzir. O pessoal do Marrones está produzindo coisa nova também, além do Social Breakdown, Classe A e o Electric Punks. Tem o Marzela, o Poplars e a Magarude na linha do ska. Sem ser autoral, tem o Wonder Maidens, que é um projeto de cover do Iron Maiden feito só por mulheres. Olha… ainda existem muitas pessoas interessadas em fazer a coisa acontecer!
– João Pedro Ramos é jornalista, redator, social media, colecJionador de vinis, CDs e música em geral. E é um dos responsáveis pelo podcast Troca Fitas! Ouça aqui.