entrevista por Leonardo Vinhas
Existe um dilema que se apresenta a todo artista veterano que tenha gozado de um grau considerável de sucesso em algum momento de sua carreira: faz sentido lançar coisas novas, se são as glórias do passado que sustentam os shows e mantém a demanda em dia? Há quem defenda que a resposta a essa questão é o que diferencia um artista de um profissional do entretenimento: enquanto o primeiro continua tentando trazer algo concreto a partir do desconforto, da curiosidade ou do impulso criativo, o último aceita que tem o necessário para continuar pagando as contas e entrega exatamente o que público espera.
São visões que podem ser questionadas, claro, mas se as considerarmos como factíveis, podemos dizer que Nasi é um artista que está plenamente ciente do que seu ofício exige. Aos 62 anos de idade, o paulistano Marcos Valadão Ridolfi continua lançando discos de inéditas e explorando novos caminhos dentro da identidade que construiu. Ao mesmo tempo, sabe que “já passou de moda” (palavras dele) e que o legado do Ira!, banda que fundou em 1981 com Edgard Scandurra e que segue na ativa, será “eterno enquanto durar”.
O bacana de “Rocksoulblues” (2024), seu mais recente álbum solo, é que o disco tem pouco a ver com o Ira!, explorando a relação de Nasi com os três gêneros que dão título ao álbum. É uma trilha musical que ele vem seguindo desde os tempos que assinava como Nasi & Os Irmãos do Blues, com quem lançou quatro álbuns, e que ficou bem mais interessante quando ele passou a assinar com seu próprio nome, assumindo uma carreira “100% solo”, por assim dizer.
“Vivo na Cena” (2010) continua sendo o grande álbum de Nasi solo, mas “Rocksoulblues” mantém a dignidade em meio a releituras pouco óbvias e bastante acertadas de Martinho da Vila (“O Caveira”), Zé Rodrix (“Devolve Meus LPs”), de uma composição celebrizada por Erasmo Carlos (“Eu Não Te Quero Santa”) e do próprio Ira! – uma “Dias de Luta” rearranjada de modo a impedir os fãs de continuarem com o ridículo coro de “porra, caralho, cadê meu baseado?” que sempre é entoado nos shows. As demais faixas oscilam do animador (“Rosa Selvagem”) ao correto (“O Que Você Quer Apostar?”, “Blues do Gato Preto”), mas só “Não Vá me Machucar”, com sua esquizofrenia entre rock e eletrônica, soa equivocada.
Nasi abriu a câmera para falar com o Scream & Yell em uma ensolarada tarde de fevereiro. De regata, e inicialmente apanhando um pouco do Google Meet (“eu sou um chimpanzé pra tecnologia, cara, me desculpa”), Nasi mostrou bom humor e empolgação com o resultado do disco, mas não teve ressalvas em discutir o encolhimento do mercado para o rock ou a condição de “dinossauro” sujeito às demandas de um público nostálgico.
Seu disco anterior com os Spoilers tinha letras muito políticas, um caráter de confronto direto, um posicionamento claro. “Rocksoulblues” já é todo centrado em um universo mais urbano e pessoal. Foram direcionamentos conscientes, na linha “já disse o que eu tinha que dizer no último, agora quero falar de outras coisas”?
Não teve essa ruptura, não. Quando comecei a fazer esse último disco, eu pensava em fazer alguma coisa sobre amor, falar de amor das formas mais diferentes possíveis. E tem isso, com a coisa mais cômica com “Devolve Meus LPs”, tem o “Não Vá me Machucar”, a música do Tim Maia (“O Que Você Quer Apostar?”), a do Erasmo (“Não Te Quero Santa”), todas flutuam em torno do amor. Isso foi pra tirar um pouco a coisa do peso do rock. Tudo bem que tem um rock’n’roll que é a “Rosa Selvagem”, mas ela também fala sobre amor. É uma tradução poética minha pra letra original, que tenta comparar o amor com uma rosa que nasce no meio do mato. Isso sim foi algo que eu procurei, mas não foi uma ruptura. O disco com os Spoilers foi bem rock inglês, eu fiz com uma turminha que é toda de filhotinhos de mods e do Ira!, aí tem essa coisa do conflito, da coisa mais política, assim como nas bandas de que a gente gosta, como The Jam, The Who. Não digo que esse disco [“Rocksoulblues”] é mais romântico, porque tem algumas coisas rasgadas, decepcionadas, mas ele fala sobre amor mesmo.
O release de “Rocksoulblues” destaca seu lado intérprete, mas esse é um lado que vem sendo explorado desde seu primeiro disco 100% solo, não? Tem muitas releituras no “Onde os Anjos Não Ousam Pisar” (2006), o “Vivo na Cena” (2010) é todo de reinterpretações. Então onde exatamente esse álbum se posiciona na construção da sua obra solista?
Como cantor, eu sempre achei escolher uma música pra cantar tão importante quanto eu escrever uma letra e musicá-la. Gosto disso de escutar uma música e falar: “é isso que eu quero dizer nesse momento”. O que esse disco tem de diferente dos outros é que os anteriores eram todos discos de band leader. Era sempre uma banda arregimentada, com músicos que tocavam comigo há muitos anos, todos com uma linguagem de rock. Esse eu busquei que fosse realmente um disco de intérprete, mergulhando fundo no universo de cada música. Pro country’n’western, eu fui buscar quem? O Jeff Berg, um dos meus coprodutores, tem uma banda de country raiz, Johnny Cash, esse lance. Por que eu vou trazer minha banda para interpretar um country (nota: a versão de “O Caveira”, de Martinho da Vila)? Eu tenho um cara com uma banda de country! Queria fazer uma versão do Ira! em blues, eu e o Igor Prado ficamos pensando bastante a respeito. Até que um dia deu o estalo: “Dias de Luta” é uma música em um tom menor, com uma letra meio melancólica, contemplativa. Eu falei: “isso é a cara do blues”. O Igor já tem esse trabalho blues/soul/funk, bem groovado. Em músicas para as quais eu queria uma coisa mais próxima do original, eu fui procurar uma banda clássica de rock, que são os músicos do Marcelo Sussekind (o baterista Sergio Melo, o guitarrista Sergio Morel e o tecladista Sergio Villarim, além do próprio Sussekind no baixo), lá no Rio de Janeiro. E assim foi. Eu queria fazer uma leitura eletrônica de um tema de blues tradicional, “Não Vá me Machucar”, que também misturasse hip hop, então, pô, Apollo IX e DJ Hum, saca? Cada faixa é um mergulho radical em cada gênero que estou visitando. Esse disco foi feito sem pressa nenhuma. Comecei a gravar no final de 2022 e concluí por volta de setembro do ano passado, aí fui lançando com muita calma os singles. Durante esse tempo todo, eu pude deixar o universo conspirar um pouquinho, pra poder encontrar uma cantora que nem a Nanda Moura, que eu não conhecia, que foi a pessoa perfeita para fazer aquele dueto comigo [em “O Caveira”]… Procurei me libertar dessas amarras de banda (risos). Banda é legal, mas tem horas que te limita. O legal desse disco foi trabalhar com várias bandas.
E como você pretende transpor esse disco para os palcos?
Eu tenho minha banda. Depois que os especialistas em seu gênero fizeram sua parte [no disco], eles [a banda de Nasi] vão copiar (risos). Ainda não estou com nada marcado, mas tem que ter um lançamento legal. O que acho que vou incrementar é com um ou dois instrumentos de sopro, que nesse disco são muito importantes, o trabalho do Sax Gordon é sensacional. Já tenho os músicos legais pra isso. Se eu não tiver uma sessão [de metais], que pelo menos eu tenha um bom saxofonista.
Essa postura de experimentar formações diferentes é algo que tem longa tradição no rock, né? Caras como Neil Young e Bruce Springsteen têm suas bandas mais frequentes, caso do Crazy Horse e da E Street Band, mas também têm vários discos com outras formações, quase sempre discos em que exploram outros gêneros. Isso é algo que você se vê construindo a longo prazo?
Sim, cara. Na verdade, eu meio que tinha isso com o Nasi & Os Irmãos do Blues. Era uma banda grande, naipe de três, quatro músicos. Mas é difícil você sustentar isso, porque os músicos têm que sobreviver, e eu competindo comigo mesmo no Ira! (risos), é muito difícil. A agenda do Ira! é muito concorrida. Mas cara, eu imagino… Estou completando 62 anos agora, pra mim Ira! vai ser eterno enquanto durar, pode até ser que complete 60 anos como os Stones, sei lá. Mas eu imagino pro meu futuro como cantor ter essa coisa que você citou aí (sorri). Pra fazer coisas mais próximas da idade que eu tenho, sabe? Eu não gosto do termo “maturidade”, mas sim um pouco mais de “elegância 60 plus” (risos), entendeu? Isso é mais legal do que só ficar na coisa do rock pauleira – que eu adoro. É legal alimentar minha alma e ver um futuro pra mim como cantor, independente dessa coisa do rock Brasil.
Já que você tocou no assunto, vou aproveitar pra perguntar: como é continuar cantando “Núcleo Base” aos 62 anos? (risos)
Cara, é uma delícia, por mais que tenha essa coisa do “eu tentei fugir…” Tentei fugir faz uns 50 anos, né? (risos) Me perguntam muito isso sobre “Envelheço na Cidade”. Aliás, um pequeno comentário: se tem música que dá dinheiro pro Ira! é “Envelheço na Cidade”, porque toda cidade que faz aniversário contrata a gente (risos). Mas sem demagogia nenhuma: toda vez que eu subo [no palco] é um público diferente. Eu não estou mais no gueto, o Ira! é uma banda do Brasil, então se eu vou tocar em, sei lá, Garanhuns, no mínimo metade do público nunca viu a banda ao vivo, nunca ouviu “Envelheço na Cidade” ao vivo, nem “Eu Quero Sempre Mais”. Então sempre tem um gosto de novidade, pelo público. Agora, ensaiar essas músicas eu não ensaio! (risos) Eu vejo artistas que têm essa crise, que brigam com o próprio sucesso, talvez porque sentem necessidade de mostrar músicas novas. Eu vi uma entrevista recente do Roger Daltrey (vocalista do The Who). O Who acabou de lançar um puta disco (nota: na verdade, o álbum “Who” saiu em 2019), elogiado pra caralho. Perguntaram pra ele quais os planos pra depois, como seria o próximo disco, e ele respondeu que não queria gravar mais discos, porque no show as pessoas só querem ouvir as músicas antigas. Eu tendo a concordar com ele (risos). Pra te falar a verdade, eu faço esses discos solo – por mais que eu esteja acompanhando os números e eles estejam animadores – pra mim mesmo. Sei que tenho um séquito de fãs que gostam do meu gosto musical, e que se eu agrado a mim mesmo vou acabar agradando a outras pessoas. Mas que dá um pouco desse bode… fazer disco novo pra quem?
Há uns 10 anos, o João Barone, dos Paralamas, tinha me falado a mesma coisa: que não via razão em gastar uma puta grana para gravar um álbum que não vai tocar em rádio, não vai chegar ao grande público, e mesmo os fãs vão querer ouvir mais as antigas que as novas.
Esse nosso último disco (“IRA”, de 2020) foi um dos mais elogiados da carreira do Ira!, eu fiquei muito satisfeito com ele, e não é fácil chegar a essa altura, com discos tão relevantes que o Ira! tem – como “Psicoacústica” (disco que recentemente foi celebrado em shows), “Vivendo e Não Aprendendo”, “Acústico MTV”, “Isso é Amor” – você dar a cara a bater para fazer alguma coisa nova e se arriscar a ouvir: “ih, mas o Ira! tá velho, hein?”, “esse disco é inferior ao resto da discografia”… A gente demorou pra fazer, mas quando fez, foi porque tinha bala na agulha no repertório. Só que você vê… O Ira! lançou esse disco, veio a pandemia, e a gente ficou dois anos sem tocar. Quando a gente volta aos palcos, você acredita que a gente já não tinha mais tesão de tocar as músicas dele? A gente tocou umas duas, três. Durante um tempo, tocamos “O Amor Também Faz Errar”, tocamos “Efeito Dominó”, “Eu Não Sei Dizer Não”… Só! A maior parte daquelas músicas a gente nunca tocou ao vivo, porque acho que até pra gente elas ficaram velhas (risos). As coisas hoje são assim. Mas vamos esperar, né? Assim como eu não fiz meu disco com pressa, quem sabe não surge outro disco do Ira! sem pressa? Eu venho falando muito sobre estar na hora do Ira! gravar um novo disco ao vivo. Essa formação “nova”está aí tem 10 anos, e é uma formação sensacional. Pra mim, é a melhor cozinha que a banda já teve – com todo o respeito às outras cozinhas, que também tiveram sua importância, seu valor. Tecnicamente, esse trio com Edgard [Scandurra], Vara (Evaristo Pádua, baterista) e Johnny [Boy, baixista], nossa senhora! Então eu acho que seria legal fazer um novo disco ao vivo resgatando alguns lados B. Estou lançando essa ideia no ar, já falei isso pra banda, e vamos pensar isso com calma. Isso de resgatar lados B é legal – vamos lembrar que “Eu Quero Sempre Mais” é uma música que nunca foi single, estava perdida num disco do Ira! (nota: no caso, o álbum “7”, de 1995), “O Girassol” a mesma coisa…
Nosso tempo está acabando, e tem uma pergunta que eu não queria deixar de fazer. Nos últimos anos, teve uma biografia (“A ira de Nasi”) e um documentário (“Você Não Sabe Quem Eu Sou”) sobre você. No meio de tantas coisas celebratórios, e ainda todo o assédio que existe em torno da figura pública do músico, como você evita cair na armadilha de virar personagem de si mesmo, ou de acreditar demais na própria lenda?
Boa pergunta, cara. Primeiro, eu não me levo muito a sério. Eu tenho o mesmo tempo de vida, o ano inteiro. Passo parte do ano numa casa que eu tenho no sul da Bahia, eu sou a mesma pessoa que convive com meus vizinhos, andando descalço, de sunga e camiseta regata (risos). Mesmo porque esses projetos que você citou não partiram de mim. Eu lembro quando a Belas Letras me ligou para fazer a proposta de uma biografia, eu topei principalmente porque eles iam me dar um adiantamento de royalties, entendeu? (risos) Já tinha um material do Alexandre Petillo (que assina “A ira de Nasi” junto de que fazia parte de um projeto de uma biografia do Ira! que foi abortada pelo fim da banda. Minha biografia é um pouco a biografia do Ira! também, né? Eu até brinco que fundei e afundei o Ira! (risos) E o documentário não partiu de mim, também. E eu também pensei: se o Justin Bieber teve uma biografia com 14 anos, por que eu com 50 não posso ter? (risos) Nos dois trabalhos, eu não investi nada, só dei entrevistas. E aí nunca caí na armadilha de fazer trabalhos chapa branca. E não porque eu sou bacana, super isso ou super aquilo. É porque não vende! (risos) A minha biografia foi capa da Ilustrada, primeira página. Porque tanto no documentário como no livro eu dei o contato dos meus desafetos, falei, “ó, você tem que entrevistar esse cara aqui que não gosta de mim” (risos) Porque é isso que as pessoas querem numa biografia. Não é aquela coisa de “ai, como ele é bonitinho, o super-herói do rock, o sobrevivente”. Eu quero que o pau tore, sacou? Porque aí é que as pessoas vão querer ver, vão falar “esse cara é de carne e osso, cada baixaria que ele fez, chegou no fundo do poço mesmo”, entendeu? Então eu não me deixo prender, não. E não tem essa coisa de “o Nasi” e “o Marcos”. É a mesma pessoa, entendeu?
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. A foto que abre o texto é de Ana Karina Zaratin
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