texto de João Paulo Barreto
A dor da perda é o que move “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (“Eternal Sunshine of the Spotless Mind”, 2004). Mas não aquela perda saudosa, que te faz olhar para seu passado com ar de nostalgia ao imaginar o quanto sua vida era diferente do que é agora. A perda representada por Michel Gondry e Charlie Kaufman em seu trabalho mais primoroso é aquela que goteja pelo ralo do dia a dia de uma relação esgotada. É aquele tipo de perda que se percebe esvair, mas cuja inércia do comodismo ou medo da quebra radical de uma frágil estrutura te faz recuar e observar de longe aquela relação se esgotar. É como uma inconsciente autoflagelação. Prefere-se destruir aos poucos a estrutura do que derrubá-la de modo, apesar de doloroso, fugaz.
Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet) já passaram por todos os estágios dessa perda em seu relacionamento. Cinismo, desencanto, rotina insuportável, tristeza e, finalmente, desrespeito mútuo. No seu limite, o esquecimento não parece mais uma possibilidade utópica, mas, concreta. E Clementine opta por esse processo. O que se segue é pura mágica cinematográfica. Através da lente de Gondry, o que vemos é um mergulhar nas emoções e memórias mais felizes de um ser humano. Felizes, no entanto, é um termo por demais abrangedor. As tristezas e decepções também vêm à tona, mas o que há nas lembranças que Joel decide apagar por despeito é um sentimento de posse irrecuperável. A dor lhe escapa entre os dedos, e a qualquer gota de lembrança a escorrer, mesmo que dolorosa de se sentir, ele se agarra em desespero.
Neste agarrar desesperado de seu protagonista, o inventivo cineasta francês parece querer se divertir, feliz como uma criança em um playground, criando suas próprias brincadeiras imaginárias (em uma metáfora apropriada) para representar aquele estado de mergulho mental e emocional de Joel. Ao reviver, durante seu processo de apagamento, as lembranças antigas e doces de sua relação com Clementine, o introspectivo homem começa a misturá-las com a sua memória recente. Para o diretor francês, a oportunidade perfeita para fazer valer sua expertise experimental. Truques de câmeras em propositalmente ausentes efeitos digitais desenham personagens que “voltam” à infância diminutos, em um esconderijo de lembranças em tentativa frustrada de não as perder.
Como em um palco de experimentações visuais, Michel Gondry mistura aquelas muitas realidades oriundas de tempos distintos. O espectador, ao perceber isso, se delicia nessa junção de elementos e cenários, uma mistura ao mesmo tempo onírica e consciente do que parece ser um sonho natural. Todavia, se trata de um mergulho de despedida naqueles momentos que serviam como um porto seguro repleto de imersões nostálgicas e acolhedoras. Que serviam, também, para retirar de si a pressão de uma realidade já deveras espinhosa. Muitas vezes, é na lembrança de um abraço, de um gesto de gentileza, de um sorriso carinhoso que encontramos o necessário despressurizar de pausa que nos fará seguir um pouco mais acalentados na rotina. Joel, ao perceber o peso de sua perda, se agarra a essas memórias de qualquer modo.
Com essa tentativa estoica de se conservar qualquer vestígio daquele sentimento durante o processo de esquecimento, Gondry desenha um mosaico de representações. Um modo de ilustrar cada fase daquele despertar amnésico e todas as barreiras que Joel teve que enfrentar. Há momentos de sutileza poética, como quando os nomes nas lombadas de livros em estantes começam a se apagar durante o rememorar de uma conversa antiga entre Joel e Clementine, que ressurge, agora, com uma força amarga diante da percepção tardia de sua importância. Como dizem, um momento só se torna importante quando deixa de ser um momento para virar uma lembrança. Impossível não imaginar aqueles nomes em lombadas sumindo em uma clara ideia de que as conversas sobre algumas daquelas obras, sejam elas livros, filmes ou qualquer peça de entretenimento simbolizou um ponto de comunhão entre um casal de namorados qualquer.
O mais fascinante de todos, no entanto, é, definitivamente, quando vemos a casa de praia onde o casal teve sua primeira conversa intima desabar por conta de uma invasão da maré. O turbilhão de ondas varre aquele sentimento, destrói seus alicerces e a metáfora daquele oceano levando embora as memórias é de, ao mesmo tempo, uma clara percepção da brutalidade como Joel quer esquecer aquele trauma e de uma sutileza das mais eficientes em toda a obra de Gondry. Joel, em sua mistura de memórias, se vê literalmente enterrado dentro da areia da praia que invade seu quarto, que invade o carro onde está de carona na volta para casa após conhecer, na praia, aquela mulher cheia de imperfeições e, por isso mesmo, perfeita para ele. Ao olhar pela janela do veículo, enxerga aquelas lembranças ressurgirem em flashes, daqueles que deixam clarões nos olhos, mas que logo passam, do mesmo modo como um tempo que se julgou tão bom passa, mas, ao final, tem que virar uma memória e apenas isso.
Há duas décadas, “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” trouxe um fôlego de originalidade ao cinema. Nele, Jim Carrey pôde, mais uma vez, comprovar seu subestimado talento como ator dramático. Há uma dupla de idiotas nonsenses (Mark Ruffalo e Elijah Wood impagáveis) e mais tristeza afetiva no arco envolvendo Kirsten Dunst e Tom Wilkinson, que nos deixou recentemente. E, obviamente, há Kate Winslet em toda sua beleza madura, desespero latente e, claro, madeixas coloridas. Em um projeto cuja dupla de criadores surpreende em um acesso de criatividade desorientador, o grupo de atores a refletir tais ideias faz jus ao tesouro de roteiro que sabem possuir em mãos.
A percepção era clara: Michel Gondry e Charlie Kaufman (e Pierre Bismuth, co-autor da história) construíram uma obra cuja originalidade te faz acreditar que ainda há esperança no amor. Mútuo e pelo cinema.
Lançado em DVD no país após sua passagem nos cinemas em 2004, o filme chega pela primeira vez ao Brasil no formato blu-ray, com edição em alta definição, em embalagem especial com luva, livreto, cards e muito material extra (entrevistas, cenas excluídas, clipe, teasers e mais) sob projeto do selo Obras-Primas do Cinema, uma das várias pequenas empresas responsáveis por manter vivo o colecionismo de filmes para além do streaming, dando ao cinéfilo um controle de possuir, realmente, um filme para si.
Algumas obras têm esse poder de nos tirar um peso incômodo do peito. E é bom tê-las por perto quando mais precisamos revisitá-las. Do mesmo modo quando boas lembranças surgem e se vão para sempre. Mas ao menos, antes de se desfragmentarem, nos ajudam a seguir em frente na busca por criar novas, e mais leves e gentis, memórias.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual