texto de Eduardo Carli de Moraes, especial de Utrecht
foto de Lisa Hussaarts
texto publicado originalmente em inglês em A Casa de Vidro
Um cara de groove descolado no palco liderando uma banda com cinco bangers empolgados abalou o núcleo do Trivoli Vredenburg, em Utrecht, um local de tirar o fôlego no centro da Holanda: BLANKO, com seus dois discos fresquinhos (“Music by BLANKO”, de 2022, e “More Music by BLANKO”, de 2023), está entre os nomes emocionantes e afirmativos da cena indie contemporânea na Holanda.
Deixem-me tentar descrever essa música conforme a ouço: o clima é de animação, o intento é te puxar pra cima com um som a um só tempo funky e rock’n’roll; ele canta como se nos convidasse pra cantar junto e toca como se quisesse que o público dançasse loucamente (“Eu só quero ver você coberto de suor”, um verso de “Damn Pandemic”, acaba resumindo tudo); as letras muitas vezes evocam um ethos de hedonismo, o lust-for-life iggypopiano, mas também evocam perda e degradação.
Algumas das minhas frases favoritas escritas por ele vêm do bluesado “Holes” ( canção presente no disco de estreia), onde o eu lírico lamenta o desaparecimento do que já foi. “A noite está cheia de buracos / Cheguei aqui com alguma coisa, vou embora sem nada de novo”. O poema musical atinge seu ápice com uma metáfora muito bem elaborada: “tudo o que era real, tudo o que era verdade, se perde como as linhas de uma tatuagem desbotada”.
Nascido em Volendam, uma pequena vila de pescadores nos arredores de Amsterdã, ele começou a tocar guitarra aos 11 anos e escreveu e cantou sua primeira música aos 13. Sua inspiração são pessoas como David Byrne (Talking Heads), Prince, Paolo Nutini, St. Vincent, e também bandas como Pearl Jam e The Black Keys. BLANKO canta maravilhosamente, num estilo semelhante aos de Dan Auerbach (Black Keys) e Alex Kapranos (Franz Ferdinand).
Ele também é um dançarino de quadris descolados, que às vezes parece genuinamente extasiado, “um escravo do demônio do rock’n’roll”, o que contribui tremendamente para sua performance ao vivo, já que ele nunca fica parado, ele está sempre em um estado de cinesia contínua. Suas músicas parece, feitas para um certo tipo de movimento corporal e “She Makes A Dead Man Dance” inicia o segundo álbum e o show fazendo declarações explosivas sobre balanços corporais: “Fui atingido por um raio, ele me atingiu na cabeça…”. A música lembra ao mesmo tempo o hard rock do AC/DC e os ataques sexy de Beck em canções como “Sexx Laws”, um homem morto é trazido de volta à vida – e não estamos falando de Jesus e Lázaro; estamos lidando com uma dançarina bruxa que move o quadril e tem habilidades de cura…
A banda de abertura, Lorem Ipsum, foi boa o suficiente, mas soa ainda um pouco imatura. Suas canções são promessas, rascunhos de uma música que, talvez, um dia se torne algo realmente bom. Remete a new wave misturado com coisas de riot grrrl, algo parecido com Elastica ou Luscious Jackson:
Já as músicas de BLANKO, ao serem ouvidas pela primeira vez, impressionam com a evidência de sua destreza como compositor – sim, o cara cria músicas legais. Em uma das melhores músicas, um dueto com Michelle Tuijp, vocalista de Lorem Ipsum, somos lançados em uma polêmica cantada entre garotos e garotas: “Give What You Got to Give” nos conecta a um fio de alta tensão:
“Sem arrependimentos” é a atitude que o personagem masculino abraça – mas não com um humor semelhante ao de “Je Ne Regrette Rien” de Edith Piaf. BLANKO usa um humor mais escrachado para destacar a situação de “sem arrependimentos” como decorrente de sua amnésia, sua memória ruim, ou mesmo seus neurônios cerebrais degradados, provavelmente por ter fumado “todo tipo de cigarro” – ele canta para ela, brincando: “Eu não posso lembrar do que eu deveria me arrepender”.
Ela está meio brava com isso, como se quisesse que ele se arrependesse e se prostrasse em mil perdões, mas também está meio viciada – ela diz: “você ainda é o homem que eu amo odiar”. A música é de tensão e liberação, de antagonismo e catarse, de energia sexual misturada com animosidade. São Eros e Tanatos enredados num chão suado à meia-noite, com princípios morais despedaçados, desejo pela vida tentando fazer sua difícil jornada do um (um indivíduo) rumo ao dois (um casal). Trocam sopapos verbais, gritam e gritam um com o outro, tentam trancar-se longe da presença do outro, pois ambos possuem condutas afirmativas de autonomia:
“Não me diga como viver!”, eles gritam um com o outro, simultaneamente, em um refrão brilhantemente elaborado que coloca BLANKO e Miche tanto em harmonia (musicalmente) quanto em dissonância (emocionalmente). É uma tremenda canção de amor. É sexy, engraçada, ultrajante, auto-irônica, de um hipsterismo auto-caçoante. O casal claramente não está perfeitamente sincronizado. E a música expressa isso de forma inteligente através das “lags” entre os cantores.
BLANKO canta e Miche responde nunca em perfeita conformidade; mesmo quando eles estão dizendo as mesmas palavras simultaneamente, “cale a boca! cale a boca!”, não há uniformidade. Um duro fio de tensão é eletrificado por dois antagonistas – esses amantes, entremeados, presos no mesmo ritmo, tentando falar a mesma língua, às vezes ficam presos na dissonância, na discórdia, na dessincronização. É definitivamente uma das melhores faixas de “More Music by BLANKO”, o segundo disco, de 2023.
Além de groovy, a música de BLANKO pode soar como uma tempestade elétrica – o ícone aqui são os “raios” que atingiram sua cabeça na faixa inicial do álbum. A mulher é aqui elevada à condição de divindade de poderes trovejantes, capaz de dispersar as nuvens escuras – “ela” – um certo princípio feminino de feiticeira, que é capaz, através da dança, de espalhar os meios de nos libertar.
O mesmo espírito transparece em uma música como “Alive At Night”, com suas imagens de animais noturnos dançando em pubs underground ao som de música alta e ensurdecedora, e BLANKO, notívago e dançante, afirma isso claramente para seus antagonistas, “Vocês chamam isso de depravação, eu chamo isso de celebração.” Esta é uma música sem vergonha de ser hedonista; canções que realmente querem agir como afirmativas de uma vida voluptuosa, não uma trilha sonora para flagelantes.
Impulsionado por uma banda muito boa e muito bem ensaiada, BLANKO provou no palco ser um dos mais promissores artistas musicais da cena contemporânea holandesa (se você ficou curioso por outros nomes da cena, procure Ross Curry, Sophie Straat e Paceshifters). BLANKO também é um guitarrista talentoso – quando ele faz seu solo, você pode pensar que está ouvindo um discípulo de Rory Gallagher ou Derek Trucks. Se ele está caminhando para o estrelato, ou se continuará sendo uma sensação underground, só o tempo dirá. Mas que tal ouvi-lo (ou melhor, lê-lo) falar sobre ritmo, corpo e música, respondendo a duas perguntas exclusivas:
Explique o que RITMO significa para você e como ele se correlaciona com O CORPO – em outras palavras, como você consegue, como artista, coordenar/sincronizar os elementos de cantar, tocar guitarra, dançar, liderar uma banda, etc.?
Ritmo ou ‘groove’ é tudo. Quase todas as minhas músicas têm um groove ou “mobilidade” muito forte. Acho que isso torna a música mais ardente, atraente e sexy. Cantar, tocar e às vezes dançar ao mesmo tempo requer prática. Às vezes gravo uma parte de guitarra no estúdio e quando tenho que tocá-la ao vivo descubro que é muito difícil fazer isso ao mesmo tempo que a parte vocal. Você tem que dividi-lo em pequenos pedaços e torná-lo 100% ‘seu’ para que pareça natural quando você toca ao vivo.
Sua música é muito descolada, funky e rock’n’roll, com uma vibração muito ascendente, de puxar o ouvinte pra cima. Como você evoluiu como músico para chegar a esses resultados?
Minha música está em constante evolução. Acabei de lançar meu segundo álbum e acredito que já está muito melhor que meu primeiro. Em todos os aspectos. Quando você cria, grava, lança e toca algo, você aprende com isso: gradualmente, você se torna mais consciente de quem e do que você é e de quais são seus ativos mais fortes e mais fracos. A evolução está em passar horas e horas criando, pensando e brincando. Acredito que meu terceiro álbum será muito melhor novamente e terei evoluído mais para ser o artista que posso ser.
– Eduardo Carli de Moraes é filósofo e jornalista. Produtor cultural em A Casa de Vidro.