entrevista por Marcela Güther
Desbravando os limites entre poesia e música, o livro-disco “O Livro dos Espelhos” (2023), da brasiliense Marianna Perna, lança um olhar profundo sobre questões existenciais e civilizatórias. Publicado pelo Selo Auroras, da Editora Penalux, o projeto faz parte de um catálogo exclusivamente à literatura produzida por mulheres. Com 136 páginas imersas em versos curtos que desafiam a descoberta do ‘Eu’ e do ‘Outro’, a obra explora a alteridade através da fusão harmoniosa de poesia e música. Dividido em três EPs (“Filha da Vertigem”, “Espelhos São Ficções” e “Memento Mori”), todos disponíveis nas principais plataformas de streaming, “O Livro dos Espelhos” propõe-seconduzir os ouvintes por um caminho de reflexão poética que culmina na leitura do livro, redefinindo a relação entre o textual e o musical.
Marianna Perna é uma multiartista e pesquisadora cuja trajetória na cena artística paulistana desde 2015 a coloca como uma voz potente na convergência entre som, corpo e consciência. Além de escritora e poeta, Marianna é historiadora, mestre em filosofia, produtora cultural e pós-graduanda em Psicologia Transpessoal. Fundadora da Casa Urânia, um espaço multiartístico e terapêutico em São Paulo, a autora revela-se como uma mente criativa, mergulhando nas intercessões multidisciplinares entre literatura, música e experiência humana. “O Livro dos Espelhos'” é uma manifestação artística que vai além da palavra escrita, incorporando a música e a fotografia e desafiando a visão convencional da poesia. Confira a entrevista completa com Marianna Perna.
Como você relaciona o seu processo de escrita com o seu processo enquanto musicista?
Meu escopo como musicista é bastante limitado e rudimentar, trabalho com base na poesia para então pensar e sentir as nuances e possibilidades sonoras – e não como composição musical, que tenha palavras em linhas de melodia e afins – então para mim a escrita sempre vem primeiro, sem vinculação musical, além do que já seja intrínseco dela, como sonoridade e ritmo textual, e deixo isso ocorrer de maneira bem livre, consolidando o poema enquanto produto textual e literário. Depois disso, quando quero explorar e descobrir novas camadas e dimensões, eu parto para um processo intuitivo e bastante sensorial onde vou “escutando” outros lugares dentro do poema, que me trazem sensações sonoras, referências etc… A verdade é que falando assim parece algo deliberado, separado e racional, mas sinto que na verdade é bastante orgânico, pois o estado poético que reside no “texto” poema é o que se revela e me guia nessa jornada, me mostrando suas paisagens e sua “cara” musical.
Você mencionou que é autora de dois livros-disco. O que seria exatamente um livro-disco? Qual é a experiência proposta por ele?
Um livro-disco é uma tentativa de descompartimentar a leitura e a apreciação musical. Outros jeitos de ler e outros jeitos de escutar música. Antigamente, no mundo antigo greco-romano, por exemplo, a poesia, ou teatro, se quiser chamar assim, era uma cerimônia que envolvia texto, música, dança, encenação, mitologia, onde sagrado e profano não estavam separados e a poesia era tudo isso, não apenas páginas de um livro. Posteriormente, conforme nossa cultura cartesiana dualista foi se consolidando como paradigma, que molda toda nossa visão de mundo, a poesia foi um dos ofícios reduzidos a um entendimento racional, um jogo de palavras que se tornou cada vez mais elitizado e difícil… Sobre esse assunto, que é bastante vasto e interessante, recomendo inclusive o livro do Octavio Paz “O arco e a lira”, riquíssimo em contar essa história, de maneira inspiradora e sensível, enaltecendo a poesia e o estado poético. Meu interesse é nessa reconexão entre as linguagens – nesse campo e em muitos outros, por exemplo, enquanto artista e pesquisadora, vindo de uma formação acadêmica – não uma coisa OU outra, e sim “E” outra. É tão mais interessante e edificante pensar & sentir, e não só pensar OU só sentir. O livro-disco me aconteceu naturalmente como fruto dessa busca pessoal de conectar, e talvez seja bom que eu não tenha dons musicais de composição, pois assim me finquei na palavra poética original e pude descobrir “mais coisas” e possibilidades, pois sinto que se compusesse canção, talvez isso se perdesse e já acessasse mais rapidamente o registro mais universal de canto/canção. E o que almejo é que a própria poesia se torne música, que torne a ser acessível, democrática, porque acredito muito em seu poder de transformação da vida, do mundo.
Como você explorou o conceito do espelho – um elemento mais comumente associado ao visual – que define seu segundo livro na música?
A grande força da poesia, para mim, reside justamente em seu poder imagético. Quanto mais ela percorre caminhos que nos trazem imagens inusitadas, inesperadas, novas, que escapam do registro cotidiano e inserem nele o mágico ou o surreal, mais isso me interessa e fascina. Me causa um grande impacto na leitura. Espelho é um desses objetos, ao mesmo tempo tão “simples”, e tão complexo em seu poder mágico e misterioso de mexer com nossas representações, de si e do outro, e isso me instigou bastante. Percebi como aparecia muito na obra de várias e vários poetas que já li. E fui em busca disso. Originalmente, essa pesquisa começou espontaneamente a partir de uma residência artística de dança e performance que fiz em 2018, logo após lançar meu primeiro livro-disco… O objeto de trabalho era justamente o espelho, e isso teve um efeito hipnótico em mim. Não por um envolvimento narcísico, mas por estar com várias mulheres naquele processo, de aprofundar cada vez mais no “ver o outro”, as outras, quando me via. Foi o efeito oposto do espelho em sua via ordinária e cotidiana: se ver. Foi me ver e me ver muito além. Me conhecer para além de mim mesma, para além dos habituais caminhos e representações. Foi algo muito mágico que me aconteceu e mexeu muito comigo. Tive vários momentos de escrever enquanto me observava e observava a movimentação das outras na sala de ensaio. Os poemas, as palavras e as imagens iam brotando de mim. São os poemas do primeiro capítulo do livro, “Série dos espelhos”. Tiveram outros textos também e eles entraram na dramaturgia da performance-investigação que estávamos criando e que apresentamos como “work in progress”. E com os textos que resultaram disso, soube na hora que seriam meu próximo livro, que ele se chamaria “O livro dos espelhos “, reunindo toda essa jornada reflexiva (reflexo e reflexão), foi algo que se apresentou intuitivamente para mim, uma jornada a que fui convocada.
Em “O Livro dos Espelhos”, há também fotografias-performance que atravessam a obra. Como surge esse processo?
A forma como vejo e sinto a poesia é bastante sensorial e sinestésica. Poemas possuem cores, texturas, paisagens, atmosferas, caligrafia, sons, vozes. A fotografia e o vídeo surgiram naturalmente desde o primeiro livro-disco. Ao estruturar o corpo de poemas, busquei imagens que os poemas pintavam em minha mente, criando uma narrativa poética visual. No processo de “O Livro dos Espelhos”, a composição visual e fotográfica foi uma extensão natural.
Como a foto-performance entra, de forma multilinguagem, no conceito musical da obra?
Sinto que as várias linguagens conduzem a uma apreensão poética expandida, que gosto de chamar de estado poético ancestral. Ancestral porque de alguma forma remete a algo muito antigo em nós, algo primordial e imemorial, que sinto que nossos ancestrais também sentiam e traduziam em suas criações artísticas e em sua forma de ver o mundo, em sintonia com a natureza. Nisso também enxergo esse estado poético expandido como um alargamento da percepção do agora, um estado em que, ainda que dure milésimos de segundos, estamos totalmente imersos no presente, no agora, e sentimos-percebemos algo brilhar, algo diferente se pronuncia, percebemos a conexão entre tudo e algo muito além da linguagem e das palavras brota. Sinto que o poema é uma tentativa de expressão, de trazer para o reino das palavras, algo intraduzível que está além delas. Mas a tentativa é válida, bela e inspiradora. Assim como uma bela imagem ou fotografia, ou paisagem, ou um som, uma música, que nos mobilizam de alguma forma, e por alguns instantes estamos inteiramente imersos e tomados por aquilo – estamos apenas ali, sentindo e apreendendo com todo nosso ser. Sinto cada linguagem do livro-disco como uma faceta do caleidoscópio, tudo junto compõe um universo poético navegável, não há hierarquia, ainda que haja pontos de partida, mas não é algo “dentro ” de uma percepção de outra coisa, como a foto “dentro da concepção musical”. Elas caminham lado a lado, são facetas de uma mesma coisa, um mesmo universo, acredito que seja algo mais do sinestésico e que eu tente propor como um objeto físico-sonoro, mas que sei que nem todos irão se conectar de maneira integral com todas as linguagens e expressões, talvez tenham sua preferida, ou mais acessível, ou talvez se encantem e se desafiem a novas percepções. Acho tudo válido e muito rico. Não há hierarquia de percepção na recepção tampouco.
Além de escritora e performer, você é pesquisadora. Poderia falar um pouco mais a respeito de como explorar múltiplas linguagens também alimenta o processo da pesquisa?
Minha formação é como historiadora, mas nesse percurso de formação, também me descobri poeta e artista, me aventurando em várias linguagens artísticas – estudo música desde os 12 anos, passei por alguns instrumentos, canto lírico, corais, fiz formação técnica em cinema, em fotografia… Sempre tive uma vasta gama de interesses, inclusive pelo universo místico, oriental – filosofias, mitologias, meditação, yoga, etc. Pareceu um caminho natural então fazer as coisas dialogarem, apesar de perceber a tendência reducionista e de especialização nas várias áreas, sobretudo na academia. Mas procurei não me prender em nada, em ser ultra especialista de algo, mas sim em me “especializar em me expandir”. Depois aos poucos fui me aprofundando na senda da poesia, onde encontrei uma possibilidade de experimentação e liberdade que acolheu essas visões amplas e multidimensionais e as coisas “se encaixaram”, fizeram sentido pra mim: colocar várias linguagens em justaposição, conduzindo a uma apreciação expandida da arte e da própria vida, uma espécie de contemplação poética que também conduz a uma transformação da forma como vemos o mundo, como somos ensinados em uma cultura repressiva, dualista e racionalista. E isso me alimenta num lugar de pesquisa de vida, de vivenciar para criar e criar para seguir vivenciando outras formas de existir. Tenho uma passagem pela academia, no mestrado, onde realizei, entre 2016 e 2019 uma pesquisa multidisciplinar de música, história, sociologia urbana, filosofia, com análise de canção, e que me trouxe um grau de mestre em filosofia, mas vejo a pesquisa como uma forma de vida muito além de uma ocupação ou profissão, ou um âmbito restrito: vejo a pesquisa como algo que deve alimentar o viver, uma postura reflexiva e filosófica que necessitamos para reinventar nossos modos de existir. Atualmente estou finalizando uma pós graduação em Psicologia Transpessoal, em um chamado que venho atendendo de conectar esses vivências e âmbitos distintos em um processo terapêutico e integrativo que leve à transformação do ser e do viver, no qual conhecimento histórico, social, filosófico, vivências contemplativas e expansivas, criatividade e linguagens artísticas, tudo em conexão e se retroalimentando reeducam nosso ser a um viver mais pleno, empático e potente, nos trazem autoconhecimento e liberdade. Essa é a pesquisa a que venho me dedicando: a pesquisa da vivência, o laboratório da vida, refletir sobre a existência e encontrar/experimentar novas formas de vivenciar quem somos.
– Marcela Güther é jornalista, produtora de conteúdo, assessora de imprensa e mediadora do Leia Mulheres.