texto de Leandro Luz
“Quando vou parar de te filmar?”, pergunta o diretor de “Seu Cavalcanti”.
O documentário pernambucano que encerrou a Mostra Olhos Livres em exibição na portentosa Cine Tenda levantada em uma praça de Tiradentes tem uma equipe estrelada: Kleber Mendonça Filho e Emilie Lesclaux são os produtores, Pedro Sotero assina a direção de fotografia (certamente das cenas menos íntimas do protagonista – as demais feitas pelo próprio diretor), Maeve Jinkings interpreta uma das personagens mais curiosas do filme e os irmãos Pretti emprestam a sua inventividade para a montagem, responsável, em boa parte, pela devida organização de um vasto material caseiro que são as gravações do cotidiano de Severino Cavalcanti, avô do diretor Leonardo Lacca.
A forma na qual o cineasta encontrou para retratar a sua pessoa favorita no mundo é inventiva e ao mesmo tempo transmite um sentimento extremamente carinhoso, sem cair em pieguices. O humor afiadíssimo do personagem aposentado da polícia civil, apaixonado pelo seu Uno Mille 2000 e grande bebedor de whiskey durante as refeições (ou, no máximo, em festas e eventos importantes) é ressaltado pela narração espirituosa de Lacca, que não deixa de contextualizar as suas motivações para ter registrado o avô de 2002 a 2016, ainda que precise se equilibrar o tempo todo entre o reiterativo e o contundente.
Lacca é um cineasta de Recife que já havia dirigido um longa-metragem anteriormente, o ótimo “Permanência” (2014), e trabalhado como diretor assistente em “Bacurau” (2019) e como preparador de elenco em “Aquarius” (2016) e “O Som ao Redor” (2012), esses três últimos dirigidos por Kleber Mendonça Filho. De “Permanência” a “Seu Cavalcanti” se foram 10 anos, o que em si pode sugerir como este segundo longa deu trabalho para o seu diretor. Soma-se isto ao fato dessa história ter um caráter extremamente pessoal para Lacca, algo sempre desafiador, sobretudo quando trata-se de um documentário com temas e objetos que giram em torno da própria família, temos uma obra singular e com um potencial enorme de alcançar um público mais amplo, caso seja bem lançado no circuito comercial.
Apesar de participar de uma certa tradição do documentário brasileiro contemporâneo, “Seu Cavalcanti” se distancia o suficiente da abordagem rigidamente performativa (de acordo com o teórico Bill Nichols) de filmes como “Elena” (Petra Costa, 2012), “Um Passaporte Húngaro” (Sandra Kogut, 2001) ou mesmo do mais recente “Retratos Fantasmas” (Kleber Mendonça Filho, 2023). A diferença está no fato do diretor trazer o seu personagem para o centro, evitando excessivos arroubos autocentrados. Não que todos os longas citados sejam muito prejudicados por este excesso (ok, talvez sejam um pouco), mas o domínio que Lacca demonstra na construção de seu filme, sempre equilibrando narração, arquivo e ficcionalização, o favorece bastante.
O documentário também se diferencia (e muito) dos filmes citados pela forma como lida com a inevitabilidade da morte de seu personagem. Entendemos desde o início as implicações que é acompanhar um registro tão duradouro de uma pessoa idosa como Seu Cavalcanti. Antevemos, inclusive, mesmo sem saber se a narrativa abordará esse fato, a morte do personagem. Para Lacca, no entanto, a tragédia morte não é o fim – e nem necessariamente uma tragédia. Mesmo após abordar o falecimento do personagem em uma bela sequência que traz uma série de registros de aniversários do avô para, ao final, mostrar o único registro do aniversário de 66 anos de sua mãe (a primeira comemoração de aniversário da família sem a presença física de Cavalcanti), Lacca segue gravando com e para a sua família. Reimagina os espaços antes ocupados pelo avô (o carro, a janela, a cama), inventa uma ficção que dá continuidade às suas peripécias (amante e filha bastarda batem à porta da viúva), enfim, faz de tudo para seguir com a câmera ligada e assim, quem sabe, continuar mantendo viva a sua memória.
Uma das cenas mais legais do documentário mostra o avô e sua família no interior de uma sala de cinema (muito provavelmente o São Luiz, palácio localizado no centro de Recife) assistindo a um corte do próprio filme. Na narração, Lacca afirma que nunca, em qualquer um de seus trabalhos anteriores, vira uma reação tão boa quanto a daquela platéia. Todos riem com vontade das piadas e atuações (ou seria apenas o seu jeito de ser?) de Seu Cavalcanti. Na verdade, os realizadores não escondem a gana pela ficcionalização, então estamos sempre sendo interpelados por gestos ficcionais, que situam-se em uma linha tênue entre os hábitos corriqueiros dos personagens e as fabulações propostas pela narrativa. Isso fica evidente já na abertura do filme, com o vovô interpretando uma música e performando à frente de um chroma key (elemento que povoa diversos momentos hilários do documentário, seja transportando Seu Cavalcanti para um universo atômico colorido, seja situando-o a frente das diversas locações que passamos a conhecer durante a narrativa).
Ainda, a junção da trilha sonora original composta por Tomaz Alves de Souza (“Bacurau”, “Cinema, Aspirinas e Urubus”) e as faixas pinçadas por Lacca (um forró safado e um arremedo de Frank Sinatra que tocam em uma festa de formatura são ótimos exemplos) dão conta de amalgamar a vocação para o cômico e para o afetivo que possui o documentário. Durante a sessão que marcou a sua estreia, pode-se ouvir gargalhadas durante toda a projeção e inevitáveis soluços e “fungadas” no decorrer dos minutos finais, tendo sido um dos filmes que mais mobilizaram o público da Mostra de Tiradentes este ano.
Mais sobre a Mostre de Cinema de Tiradentes
– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.
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