27ª Mostra de Cinema de Tiradentes: Divertido e enfadonho, “Maçãs no Escuro” pena para acompanhar seu personagem

 

texto de Leandro Luz

“Maçãs no Escuro” faz um mergulho na vida de Edson Aquino, dramaturgo fundador da companhia de teatro Arruaça, sediada em Diadema, no estado de São Paulo. O diretor Tiago A. Neves aborda a sua história ora com a acidez de um mockumentary (termo atribuído a obras que apresentam eventos ficcionais, mas vestidos de uma abordagem documental), ora com a ternura de um filme-homenagem. Esta fricção gera momentos divertidos, mas outros por demais enfadonhos.

Colocar em questão a ideia de falso documentário se mostra pertinente pela insistência do próprio filme em jogar com a ideia da paródia, algo típico do gênero. Logo na sequência de abertura, assistimos ao personagem principal ser entrevistado por um cineasta estrangeiro, supomos, auxiliado pela tradução simultânea de um dos companheiros de Edson. No diálogo caótico entre os dois (na verdade, entre os três), entendemos rapidamente que as traduções depreendidas não condizem em nada com a realidade. Neste momento ainda incipiente da narrativa, o filme nos faz crer que o problema é a falta de conhecimento básico de inglês dos personagens. Ao final da projeção, estamos certos de que havia muito mais sacanagem envolvida do que barreiras idiomáticas.

“Sacanagem”, aliás, é uma boa palavra para nortear o pensamento sobre “Maçãs no Escuro”. Somando-se ao contexto de baixo orçamento no qual o longa-metragem se insere, temos em mãos talvez as principais chaves para desvendá-lo. Rodado aparentemente com equipamentos simples e em situação de guerrilha, a obra constantemente apresenta questões de baixa visibilidade e de sons abafados – nada que abale os realizadores, pois o tom geral é de que o objetivo, no entanto, era esse mesmo. Para o espectador que não se dispõe a entrar de cabeça na proposta tanto quanto seu diretor e sua equipe, contudo, sobram ruídos que, apesar de fazerem algum sentido, em abundância soam excessivos.

Em uma das cenas principais, a vocação cômica do filme e os excessos que a tolhem ficam muito evidentes. Edson, um canastrão de meia idade mordaz nas palavras e nos gestos (alguns poderiam compará-lo à figura e à personalidade do saudoso produtor musical Carlos Eduardo Miranda, resguardadas as devidas proporções), sofre uma tentativa de assalto que jamais o abala. Em última instância, o assaltante se cansa do falastrão (“Você quer me roubar por quê? Eu sou fodido!”) e o ameaça para que saia da sua frente. O diretor se mostra muito engajado em fazer essas tiradas jocosas funcionarem no filme, e de fato elas até provocam algumas boas risadas pelo non-sense (como na sequência de uma festa regada a vinhos absurdamente caros, defende-se, e povoada de convidados que não poderiam ser mais diferentes entre si). O problema é como o ritmo da narrativa implode qualquer tentativa para que o bom humor prevaleça.

O principal percalço para a devida fruição é a constante utilização de tela preta entre planos, interrompendo algo que, justamente, deveria transitar com fluidez entre uma mesa de bar e outra, da apresentação de um espetáculo a um assalto no meio da rua, enfim, de uma situação inusitada a outra em que Edson se coloca. Este recurso de montagem costumeiramente é usado como respiro ou, em alguns casos, para delimitar uma transição importante entre um plano e outro (saltos temporais, espaciais ou mesmo dramáticos na narrativa). Em “Maçãs no Escuro” utiliza-se tanto a tela preta que o seu sentido rapidamente se esvai e, o que é pior, não contribui para que os outros elementos do filme ganhem força.

O cotidiano de Edson é caótico, despretensioso e, por isso, o personagem é admirado e exaltado pelo fiapo de trama e pelos seus corriqueiros acontecimentos: Edson caçoa do amigo que pede uma cerveja puro malte (“Me traz uma Skol!”), demonstra a sua preferência pelas batatinhas chips ao (tanto quanto) industrializado torcida sabor pimenta mexicana, relata como conheceu um famoso dramaturgo vendendo livros numa calçada e defende com unhas e dentes a sua concepção de teatro (abre-se mão de tudo, cenário, diretor, ator, menos do público).

Neves dirigiu um curta-metragem chamado “Remoinho” em 2020, um melodrama sobre uma mulher que retorna a contragosto à casa da mãe. Vislumbramos, em “Maçãs no Escuro”, um interesse semelhante pelas fortes emoções. Se a cena em que o protagonista visita o túmulo da mãe, ao final do filme, soa aceitável pela ligação emocional que tenta estabelecer com o personagem e, consequentemente, com o público, também é sentida como um artifício anticlimático que pouco conversa formalmente ou tematicamente com o que estava sendo construído até então. Temas como o ostracismo artístico, as crises criativas, a caretice da “indústria cultural” brasileira e a iconoclastia de Edson poderiam ser muito melhor explorados pelo documentário e mereciam uma melhor amarração aqui. Em resumo, o filme nos permite saborear a deliciosa personalidade de seu protagonista, mas pena um bocado para acompanhá-lo em sua capacidade para a invenção.

Mais sobre a Mostre de Cinema de Tiradentes

Edson Aquino e o diretor Tiago A. Neves / Foto: Divulgação

– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.

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