Literatura: Romance inédito de Carolina Maria de Jesus faz um estudo de diferentes possibilidades de escravidão

texto por Gabriel Pinheiro

Carolina Maria de Jesus é vinculada, tanto na mente do público, quanto da crítica, sobretudo à escrita de diários. Ao falarmos na escritora, é quase imediata a conexão com sua obra mais conhecida, “Quarto de despejo: diário de uma favelada” (1960). O que muitos não sabem é que Carolina, falecida em 1977, produziu muito mais, para além da escrita de diários – e queria ser reconhecida enquanto uma escritora múltipla, tanto na forma quanto nos temas de sua produção literária. Poesia, romance, peças de teatro: Carolina Maria de Jesus deixou uma vasta obra, boa parte dela inédita.

Essa produção passa a ganhar especial atenção com o projeto “Cadernos de Carolina”, da Companhia das Letras, com um conselho editorial capitaneado pela escritora Conceição Evaristo e Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina Maria de Jesus. O inédito “O escravo” é publicado agora pela editora, trazendo ao público uma Carolina romancista atenta às questões de seu tempo, numa grande trama familiar, em que mira o olhar para certa classe média brasileira.

“O escravo” é, de início, uma história de amor. Dois primos, Renato e Rosa, sonham com um futuro juntos, numa história conjunta construída desde muito jovens. Enquanto Renato é um estudante de medicina, parte de um núcleo familiar abastado – decorrente da família materna –, Rosa é uma jovem humilde, que sonha em ser pianista, mas vê suas ambições pouco a pouco derrubadas pelo peso da realidade.

Entre os dois, há a mãe de Renato. Assim como decidiu pelo futuro profissional do filho – a medicina, não o direito – a mulher quer ter em mãos o futuro matrimonial do estudante. Há outra jovem em questão em seu radar, um casamento muito mais valioso e satisfatório para os interesses familiares.

Essa parece ser uma trama simples, um amor impossível e as consequências desta impossibilidade na vida de todos os envolvidos. E é, até certo ponto. A complexidade se dá no olhar de Carolina Maria de Jesus para todas essas consequências. Uma série de infortúnios acompanha os protagonistas, tensionando questões de gênero, classe social e patriarcado, por exemplo.

Acompanhamos o medo e a desconfiança masculina frente à possibilidade de emancipação feminina. Carolina tem um olhar profundo para o humano, apresentando personagens psicologicamente bem construídos em seus excessos e ausências. A não realização do desejo leva seu protagonista, pouco a pouco, em direção à loucura.

Carolina Maria de Jesus faz um verdadeiro estudo de diferentes possibilidades de escravidão à que a humanidade pode se ver sujeita em “O escravo”. A escravidão do amor, do dinheiro, dos desejos, das relações de poder e da idealização do outro. “Somos escravos de tudo que desêjamos possuir. Ninguem é livre neste mundo. Ha diversas especies de escravidôes. (…) Todo homem no mundo é um caçadôr de coleçôes. Todos procuram algo neste mundo”.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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