texto por Renan Guerra
Mel Rosário é cabeleireira, religiosa e mulher trans. Impedida de entrar na igreja do bairro, ela decide repetidamente ir até a frente do templo e protestar em busca de aceitação. Ela repete essa via crucis toda a noite em que há culto. Se víssemos esse plot numa novela ou em outra obra de ficção, rapidamente diríamos que essa história poderia ser por demais absurda, mas essa é a magia do documentário, pois ele consegue apontar suas lentes para a idiossincrasia das coisas e a complexidade dos personagens humanos. “Toda Noite Estarei Lá”, de Suellen Vasconcelos e Tati Franklin, tateia, de alguma forma, esse universo complexo e obtuso do mundo de Mel.
A relação conflituosa entre vivências LGBTs e a religiosidade já é algo histórico e latente, mas nos últimos anos vimos isso se tornar uma bandeira cada vez mais forte quando unimos religião e política, tanto que as investidas anti avanços LGBTs se tornaram uma luta constante da bancada evangélica na política brasileira. O documentário de Suellen e Tati acompanha o dia a dia de Mel em um recorte temporal bastante marcante, que vai de 2017 a 2021, em um processo que deságua na prisão de Luís Inácio Lula da Silva, na eleição de Bolsonaro e na experiência traumática da pandemia de covid em 2020. Esses eventos costuram a narrativa do filme, ajudando a compor um pano de fundo para a luta de Mel.
Nesse recorte, “Toda Noite Estarei Lá” opta por uma narrativa extremamente focada em Rosário. Acompanhamos um pouco do seu dia a dia, a vemos interagir com a mãe, acompanhamos seus processos judiciais movidos contra a igreja e a vemos repetidamente indo até a frente da instituição religiosa com seus cartazes de protesto. Essa escolha narrativa tem seu lado positivo, mas expõe uma boa leva de questões negativas. Positivamente nos tornamos próximos de Mel, entendemos a importância simbólica daquela luta para ela e compreendemos a sua crença de forma mais sólida. Por outro lado uma série de lacunas fica em suspenso: como Mel entrou naquela igreja? Qual a relação de Mel com os outros pares de sua comunidade? Como esses outros pares lidam com a sua luta?
Temos lampejos das relações interpessoais de Mel – a vemos ser bem quista por um grupo de pessoas na rua, vemos que ela tem um grupo de amigos diversos em um celebração de aniversário e vemos alguns relatos sobre a sua relação familiar -, mas é certo que a narrativa com mais vozes sendo ouvidas poderia enriquecer o filme, dando mais complexidade a esse panorama que vemos na tela. Alguns personagens chegam a questionar Mel “por que você não muda de igreja?” e essa é uma questão que perpassa o filme. A explicação da protagonista é bastante rica e interessante, mas se tivéssemos outros personagens também falando e sendo ouvidos isso poderia enriquecer ainda mais o longa-metragem.
A sensação geral é que temos na tela uma personagem rica, complexa e extremamente interessante, porém em uma narrativa que fica apenas na superfície, que não mergulha de forma complexa nas fissuras dessa história. Pensar a relação entre os corpos trans e as igrejas, especialmente as evangélicas, é algo extremamente importante e que poderia render discussões mais amplas, mas que aqui ficam mais a cargo do espectador do que realmente do filme em si, o que é uma pena.
De todo modo, essas faltas não excluem as qualidades de “Toda Noite Estarei Lá”, pois ainda assim é um filme muito interessante, que nos prende na história de Mel e nos leva por um caminho inesperado nos colocando frente à questões que nem sempre enfrentamos – ou que até nos negamos a enfrentar. E só o fato de sermos colocados diante das complexidades possíveis que há em ser humano já vale a sessão.
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.