texto por Renan Guerra
Suellen trabalha no pedágio de uma das rodovias de Cubatão. No seu trabalho, a mais recente piada são os vídeos que seu filho Tiquinho tem publicado na internet. Os trejeitos afeminados do filho e o medo de que ele seja gay levam Suellen a embarcar em barras mais pesadas, tudo com a intenção de pagar um curso que promete a cura gay e está sendo ministrado na cidade por um pastor vindo do estrangeiro. “Pedágio”, novo filme de Carolina Markowicz (“Carvão”), pode ser resumido de forma rasa nessa sinopse, mas ela também permite certas leituras que nem sempre se realizarão na tela. Suellen não é necessariamente uma vilã, nem o filme cai em dualidades óbvias, o interesse aqui é mergulhar nas idiossincrasias e hipocrisias de uma sociedade que gosta demais de apontar o dedo para o outro.
Suellen é vivida com maestria por Maeve Jinkings, já Tiquinho é construído em toda sua amplitude pela atuação solar de Kauan Alvarenga. Para completar o elenco principal ainda temos Thomás Aquino como Arauto, namorado de Suellen, e Telma, interpretada por Aline Marta Maia, a colega de trabalho de Suellen que é religiosa e que nos leva até o malfadado curso de cura gay (um parêntese aqui para falar dessa parceria de Maeve e Thomás, que já foi vista em “Bacurau” e mais recentemente na série “Os Outros”, e que, curiosamente, não soa repetitivo aqui, especialmente pelo talento de ambos em construir personagens tão distintos).Esse elenco nos ajuda na construção dos diferentes cenários que acompanhamos no filme. Para além da busca dessa mãe pela cura gay ainda observamos sua entrada nesse mundo do crime, sua relação amorosa conturbada, a relação turbulenta de sua colega Telma com o sexo e as próprias descobertas da juventude de Tiquinho.
Descrevendo assim pode parecer que “Pedágio” é um filme difícil e cheio de narrativas, mas não, é tudo bem amarrado em uma linha de tempo delimitada e costurada por um tom bastante único. Lendo as informações que citamos nos parágrafos anteriores poderia se esperar um drama doloroso e cheio de traumas, mas, pelo contrário, é um filme que sabe mesclar de forma bastante ousada o drama quase seco com um humor que beira o desconfortável que suscita a dúvida: “eu deveria rir disso?” E essa sensação se dá porque o filme de Markowicz nos coloca diante dos absurdos que o preconceito e o desconhecimento podem causar. A homofobia, quando incentivada por essas figuras de autoridade – que no caso do filme são religiosas, mas poderiam ser políticas também – apenas gera uma sequência de acontecimentos que são surreais. Na vida real são acontecimentos revoltantes e dolorosos, mas a potencialidade do cinema é nos colocar em posição de rir dessa tacanhez burra e medíocre do preconceito.
Nesse cenário, uma das grandes riquezas de “Pedágio” é a construção do personagem Tiquinho. Um jovem homem gay negro que se impõe perante o mundo, mas em que nenhum momento recai nessas representações agressivas sob as quais geralmente são desenhados os personagens negros. Tiquinho se revolta, se machuca, mas ele parece flanar acima de toda a mesquinhez. A forma como ele cuida de seu cabelo, como ele se emociona com suas cantoras de jazz, como ele se mostra vulnerável ao seu apaixonar ou como ele ainda se conecta com aquela mãe que não o aceita cria uma narrativa múltipla, de um personagem em ebulição – como são os jovens cheios de sonhos. Num contraponto, Suellen, a mãe, é essa personagem errada, cheia de problemas, mas que ainda parece tão humana e complexa quanto Tiquinho. Como falamos, ela não é uma vilã, ela é realmente uma mãe errando seus passos. Essa forma de construir os personagens apenas aproxima o espectador e cria um filme cheio de camadas, com coisas a serem descobertas e detalhes a serem absorvidos e debatidos.
Além disso tudo que falamos, vale destacar a o exagero camp colocado na tal igreja e em todo o seu processo de cura gay, são sequências absurdas e engraçadíssimas, que deixam claro, a partir do humor, o quanto esses processos podem vilipendiar existências e colocam os mais diferentes corpos sob violência moral e psicológica. E como falamos, na ficção rimos do absurdo, mas a realidade é mais dura e os retrocessos estão aí a nos rodear, com discussões sobre a validade do casamento homoafetivo ou mesmo a tentativa constante de chancelar esses processos fajutos de cura gay e qualquer outro exercício criminoso que tenta limitar as possibilidades de nossa sexualidade ou de nosso gênero. Enfim, é muito interessante como “Pedágio” consegue suscitar todas essas discussões sem ser um filme panfletário ou calcado em um discurso que é maior que a narrativa, pelo contrário, a narrativa e a existência complexa daqueles personagens é que nos leva a refletir todas essas outras camadas políticas e sociais.
Inteligente, sagaz e emocionante, “Pedágio” é uma prova de que, podem vir todos os retrocessos e violências, a arte e a diversidade seguem pulsantes e ricas, nos fazendo rir, chorar e nos conectar nem que seja por 90 minutos dentro de uma sala de cinema.
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.