entrevista por Leonardo Vinhas
“As Histórias São Iguais”, da Relespublica, é um dos álbuns mais celebrados do rock curitibano. Mas para quem está chegando no mundo da música em 2023, é provável que essa frase não queira dizer muita coisa. Relespublica? Rock curitibano?
Esse leitor hipotético pode ler “As Histórias São Iguais – As aventuras da Relespublica na terra da garoa e solidão” (2023) sem medo de ficar perdido na leitura. Os autores conseguiram fazer um autêntico resgate histórico, recriando o clima e o contexto da época sem carregar nas tintas saudosistas ou aumentar a dimensão dos fatos. Melissa Medroni e Marcelo Dallegrave – os escritores em questão – entregam uma história viva, e que faz jus a esse que é, sim, um dos melhores álbuns de rock produzidos no Paraná (que, casualmente, também acaba de ganhar reedição em vinil pela Monstro Discos). E dependendo das suas preferências, não seria exagero dizer “no Brasil”.
O livro é o quinto lançamento da série Sound + Vision, da Editora Barbante, na qual os livros são todos dedicados a analisar um disco inteiro. Todos seguem o formato faixa a faixa para a organização de capítulos, mas cada um é livre para explorar esse formato como quiser (outro deles, você já viu aqui, foi dedicada a “Ventura”, dos Los Hermanos). De todos os livros lançados até o momento, esse é o mais “jornalístico”, no sentido de trazer vozes diferentes e até versões conflitantes.
Melissa Medroni e Marcelo Dallegrave haviam inaugurado a série com o livro “Corredor Polonês – Patife Band e a criação da obra-prima esquecida do rock brasileiro”, atualmente esgotado. Mas em “As Histórias São Iguais”, o resultado é mais interessante: a leitura é fluida, leve, e extremamente afetiva, sem jamais negligenciar a apuração jornalística. O Scream & Yell conversou com o casal para conhecer mais sobre o processo de escrita do livro. Recomenda-se a leitura dessa entrevista com “As Histórias São Iguais” rolando ao fundo.
A série Sound + Vision não tem nenhuma pretensão de falar sobre álbuns famosíssimos ou “essenciais”. A ideia é sempre fala de um álbum que tenha significância ou para o autor ou para um determinado grupo de pessoas. “As Histórias São Iguais” está circunscrito a um momento muito particular na história da produção autoral de Curitiba, no qual havia uma grande efervescência e se acreditava que essas bandas podiam sair do Paraná para ter uma projeção maior. Mas fosse qual fosse o resultado, quem estava por lá parecia gostar muito dessa movimentação toda. Qual desses aspectos vocês buscaram resgatar com o livro?
Melissa Medroni: Como você disse, é uma escolha mais afetiva. O disco foi lançado em 2003, justamente o ano em que a gente se conheceu. Não pensamos na efeméride, de que o álbum está completando 20 anos. A Reles era uma banda de quem a gente gostava muito, e esse disco é inteiro bom, né? Porque tem bandas locais, ou de outros lugares, das quais a gente gosta, mas não do disco inteiro. Geralmente é uma faixa, duas, três… É difícil hoje em dia um único disco inteiro te agradar, né? Esse é um raro onde todas as faixas são super legais.
“All killer no filler”, como se dizia antigamente.
Melissa: Isso. E esse livro, que é o segundo que escrevemos pra coleção, veio também no contexto de pandemia. A gente é funcionário público, e queria resgatar alguma atividade nessa área de criatividade, de produção artística. Além disso, tem algo da minha parte, como jornalista, de ter uma preocupação de deixar um registro histórico de algum pedaço da história que a gente viveu, coisas das quais a gente foi testemunha ocular e que não têm registro ainda. Sei que tem algum levantamento da história da banda feito pelo [jornalista paranaense] Sandro Moser, mas com a história do disco, como a gente fez, não tinha nada. Eu e o Marcelo sentimos falta de ter coisas que valorizem a produção local de Curitiba e do Paraná. Tem cenas que são muito valorizadas pelas pessoas do lugar, mas em Curitiba, mesmo tendo muita produção bacana, as coisas acabam ficando à margem. As pessoas não valorizam tanto as coisas que são feitas aqui. O Festival de Teatro é muito conhecido por aplaudir e receber bem os artistas, mas os próprios artistas daqui nem sempre tem a repercussão que eles mereciam ter. Isso é o que gente não queria para a Relespública. Essa banda e esse disco mereciam ter um carinho, uma abordagem que registrasse a história e fosse uma homenagem decente para eles, porque eles mereciam.
É curioso você ter falado que o disco é inteiro bom, porque a própria Reles nunca mais conseguiu fazer outro disco assim, desse mesmo nível. Tanto que uma boa parte do repertório de qualquer show que eles façam é tirada de “As Histórias São Iguais”.
Melissa: Sim, e você pega o primeiro livro que a gente escreveu, é sobre o “Corredor Polonês”, outro disco que também é assim. Mas já é bem difícil pegar uma banda que tem um disco inteiro bom, né?
Já que você falou do “Corredor Polonês”, queria comentar sobre uma diferença que vejo entre ele e esse último. Em “As Histórias São Iguais”, a gente tem as vozes de todos os integrantes da Reles, do [produtor] Marcelo Crivano, de colaboradores da banda, de muita gente. E senti que o livro anterior dava total protagonismo ao Paulo Barnabé, vocalista da Patife Band.
Marcelo Dallegrave: Na verdade, o livro do “Corredor Polonês” tem mais entrevistados. Eu procurei ir atrás de todo mundo, entrevistei a banda inteira. O André [Fonseca, guitarrista], o Paulo [Barnabé], o Sidney [Giovenazzi, baixista], o Paulo Melo [baterista], o [produtor] Pena Schmidt, a pessoa que fez a capa… Foi mais gente, mas o problema é que o Paulo Barnabé entende que a Patife é ele. E quando ele leu o livro e viu que tinha depoimentos de outras pessoas, ele ficou um pouco chateado. E isso é o que eu tenho para falar sobre o “Corredor” por enquanto.
Não vou duvidar de que você tenha feito mais entrevistas, mas o texto final desse livro da Reles tem muito mais aspas. Tem espaço pra contradições, versões diferentes, não tem ninguém assumindo um protagonismo. Por isso eu senti que teve mais um contraponto de outras vozes, a história ficou mais viva.
Melissa: Mas tem umas coisas que podem ter gerado isso que você percebeu. Porque, com a Reles, já rolava uma proximidade. É uma banda de Curitiba, são amigos do Marcelo, então a gente teve essa abertura que não tinha com a Patife. A gente até desenvolveu uma amizade, uma intimidade, com o Sidney Giovenazzi, mas isso foi depois. E tem a situação na qual as bandas se encontram hoje em dia. A Patife se desfez logo depois que o disco saiu; a Relespublica está junta até hoje. O diálogo entre eles é fácil, e entre os ex-integrantes da Patife não é, aliás, não está sendo fácil até hoje.
De fato, esse livro da Reles tem algo notável: os depoimentos têm muito carinho. Existe um respeito pela época, não existe um amargor por coisas que não aconteceram – embora a história da banda seja cheia de muita coisa que se prometeu e não aconteceu. Mesmo com isso, o livro tem uma leveza muito grande, no texto de vocês e nas vozes dos entrevistados.
Marcelo: Os dois livros foram feitos com muito carinho, o nome dos nossos filhos está ali nos agradecimentos, na introdução. Mas os dois foram feitos de maneiras diferentes. Eu entrevistei separadamente os integrantes para o “Corredor Polonês”, enquanto o da Reles eu formei um grupo com os três integrantes e o Crivano, tudo que se falava ali estava claro para todos.
Melissa: Outra coisa que eu acho que fez diferença é que tanto os três músicos da Reles quanto o produtor são pessoas muito bem resolvidas na vida hoje em dia. O Fábio [Elias] é o único que vive de música, mas todo mundo ali, o Fábio inclusive, tem uma atividade laboral na qual é bem sucedido. Por isso eu acho que não existe frustração, não existe amargor da parte deles. Eles têm muito carinho por esse trabalho, se emocionam para falar, se emocionaram várias vezes ao longo das entrevistas, mandavam áudio com voz embargada… E depois que o livro saiu, eles se emocionaram muito também. É uma história bonita, a gente já via dessa forma, e eles nos passaram isso, essa beleza toda. Então essa leveza que ficou impressa veio de todos os lados, eles tratam aquilo como um filho deles.
Voltando ao papo de “discos inteiramente bons” (risos). Claro que não existe uma fórmula para se chegar a isso, senão toda banda já teria usado. Mas queria ouvir de vocês, como jornalistas e como ouvintes apaixonados por música, quais os fatores, as circunstâncias, que vocês acham que contribuem para o nascimento desses discos tão particulares, que se tornam emblemáticos para o artista?
Marcelo: Eu tenho uma teoria sobre isso (ri), que é: os caras eram jovens quando fizeram isso, entendeu? (risos) É um entrosamento dos caras. Tipo, talvez quando eles ficam mais velhos, só vão tocar junto, eles não saem mais, saca? Os caras se encontravam e compunham e saíam todo dia, iam beber, e tocavam, e iam para um churrasco e tocavam mais, entendeu? Quando cada um tem a sua própria vida, fica mais difícil ter esse entrosamento, essa convivência.
Melissa: Tem a questão do contexto também, a coisa do artista que consegue materializar alguma coisa que está no ar. E naquele final dos anos 1980, começo dos anos 90, tinha muita coisa acontecendo no Brasil. O país estava saindo de um período político muito difícil, a juventude super entediada, sem opções de lazer, não existia um mercado de entretenimento como o de hoje. O pessoal da Reles ficava de bobeira nas pracinhas, não tinham o que fazer, não tinha internet, não tinha nada do que tem hoje. O que eles fizeram? Arrumaram instrumentos para tocar e foram beber nessa fonte mod, e fizeram uma coisa muito bem costurada entre som e estética. É a estética da Londres dos mods com a estética paulista do Ira! e a estética de Curitiba. Todos com o céu cinza, a chuva, a umidade essa coisa de sair com a garota, de respirar fumaça. Então eu acho que eles conseguiram sintetizar realmente isso tudo, e é isso que o bom artista faz: ele pega alguma coisa que tá no ar e materializa aquilo de alguma forma. No caso da Reles, foi na forma da música. É a autenticidade que faz desse disco algo realmente tão bom.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.