texto de Marcelo Costa
“E você, mestre, como se vê: Um crítico gastronômico? Um artista? Um escritor? Um jornalista especializado em Buenos Aires?”, pergunta o entrevistador em um programa de rádio. Manuel Tamayo Prats, o entrevistado, então responde: “Diria que não sou nada”. Um autêntico dândi (portenho), espécie que está em extinção em várias partes do globo, mas que tem em cada torrão seu representante inconfundível, Manuel (vivido com excelência pelo ator Luis Brandoni) é um crítico gastronômico da velha guarda, extremamente sofisticado, ainda que o dinheiro ande faltando, e elegantemente venenoso em seus textos, sem nenhuma piedade.
Manuel Tamayo Prats é o personagem central da série “Nada” (no Brasil, “O Faz Nada”, tradução péssima que não dá conta da história), cuja primeira temporada está disponível no Star+ com cinco episódios de meia hora (totalizando duas horas e meia de história), e que ainda conta com uma deliciosa participação de Robert De Niro como um famoso escritor que cultiva uma amizade de décadas com o crítico portenho – é De Niro, ou melhor, o escritor Vincent Parisi (vivido pelo ator) que narra a história e ainda participa de alguns momentos sublimes da série (o ator passou 10 dias em Buenos Aires filmando sua participação – e comendo bem, claro).
O ponto de partida de “Nada” é… a partida de Celsa (María Rosa Fugazot), governanta que cuidava de Manuel desde… sempre. Sem Celsa, Manuel, que passou décadas delegando tarefas e deveres para a empregada evitando celular ou mesmo dirigir seu Mercedes… amarelo, precisa tomar as rédeas de sua vida, o que o coloca em diversas situações embaraçosas, cômicas e deliciosas. É quando surge em cena uma garota paraguaia, Antonia (a também excelente Majo Cabrera), que veio a Buenos Aires em busca de emprego, deixando sua filha pequena com a avó no país vizinho – e concedendo a Manuel momentos magicamente proustianos na trama.
Mariano Cohn e Gastón Duprat, criadores da série, contaram em entrevista ao El País que tiveram a ideia de “Nada” em um jantar com Luis Brandoni em que o ator mostrou a eles uma foto de De Niro nos anos 1980 sentado a mesma mesa em que eles estavam jantando. Próximos de Brandoni, Cohn e Duprat cogitaram a ideia de uma série que partisse dessa amizade distante de dois amigos temperando a trama com elementos da própria vida de Brandoni: “Ele tem uma conversa muito boa, muita experiência, e também tinha uma espécie de governanta em tempo integral em sua casa, que o fazia seguir certos procedimentos culinários”, conta Mariano
Buenos Aires e a culinária são dois ingredientes de destaque na série, explorados de maneira altamente eficaz. De Niro, em certo momento, explica as diferenças entre “boludo” e “pelotudo” (e outros xingamentos tipicamente argentinos), tem uma pequena aula sobre itens do café da manhã portenho enquanto confessa que é completamente apaixonado pelo bife de chorizo a caballo (com dois ovos em cima, “uma metáfora elegante da masculinidade do cavaleiro”, explica Vincent). Aliás, o momento em que Manuel e Vincent são servidos com um “bife de chorizo a caballo” é daqueles que nos faz imediatamente buscar voos para Buenos Aires.
“Os cidadãos de Buenos Aires são chamados de ‘portenhos’”, explica Vincent em certo momento da série. “E é quase impossível definir um portenho. Eles podem ser acolhedores e amigáveis ou filhos da puta. Você pode cair morto na calçada e eles passarem batido ou podem ser as pessoas mais nobres do planeta”, define o escritor. Mariano Cohn e Gastón Duprat reforçam esse olhar sobre a cidade: “Você pode estar muito confortável e muito desconfortável ao mesmo tempo, e isso te dá muita adrenalina”, diz Cohn. “Buenos Aires não é um lugar calmo e tranquilo, uma cidade na Suíça com um lago e uma montanha, é o oposto disso”, compara Gáston.
“Nada” apresenta com delicada perfeição, humor impagavelmente cínico e bela fotografia essa leitura não apenas de um homem apaixonado por uma cidade bastante particular (e sua comida maravilhosa e “monstruosamente hibrida” com pratos que, caso italianos conhecessem, matariam os argentinos por sua desfaçatez), mas também das sacudidas que, vira e mexe, o ser-humano necessita para seguir em frente, e, ainda, o triunfo do dom natural sobre o ego estudado (rememorando um dos melhores filmes de Woody Allen, “Tiros na Broadway”, de 1993). O resultado é uma das séries mais simples, inteligentes e divertidas do ano.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.