texto por Leonardo Vinhas
No dia 19 de outubro, a banda argentina Los Espiritus fez um show “quase” surpresa em São Paulo. “Quase” porque divulgação houve – iniciada menos de duas semanas antes da data, mas houve. O fato é que a apresentação paulistana foi uma espécie de encaixe de última hora na turnê latino-americana que a banda empreendia, embalada pelo lançamento de seu sexto disco, “La Montaña”, que saiu um mês antes (14 de setembro)…
Mais inusitado ainda foi o show ter ocorrido na simpática, porém diminuta, Associação Cultural Cecília. Habituados a tocar para públicos de quatro ou cinco dígitos, Los Espiritus subiram ao palco diante de um público que não chegava a 100 pessoas, e honrando o clichê, tocaram como se estivessem diante de um estádio cheio. A banda estava solta, risonha e segura, e parecia encarar aquela breve passagem pelo Brasil como uma espécie de feriado.
Antes deles, o quarteto BIKE, de São José dos Campos, entregou seu “kraut punk” psicodélico. Numa apresentação curta e (felizmente) sem espaço para muitas dissonâncias, a banda privilegiou canções do ótimo “Arte Bruta” (2023), e comprovou o que uma audição atenta de seus álbuns já mostrava: quando buscam um viés mais cancioneiro, os resultados são muito melhores. Basta perceber como “Filha do Vento”, “Boca do Sol” (de “Quarto Tempo”, de 2019), e mesmo a mântrica “Santa Cabeça”, são melhor recebidas pelo público. É fato que a própria banda já declarou que gosta de não precisar se prender a estruturas e formatos de canção, mas ainda assim é interessante pensar que caminhos eles poderiam tomar se investissen mais nessa seara, ainda que dentro dos seus termos.
Uma breve troca de equipamentos, e o quinteto argentino sobe ao palco emendando “Funeral” e “La Montaña”, duas faixas do último álbum, que a essa altura já pode ser apontado com tranquilidade como um dos discos do ano. Na sequência, dois hits surgem levemente modificados: “La Mirada” vem numa versão com ainda mais groove, e “Mares” surge um tiquinho mais pesada e muito mais psicodélica, perdendo a cara de pop praieiro sem deixar de ser uma grande canção.
E é ainda nesse momento de show que é possível constatar que a banda finalmente consolidou a transformação musical e interpessoal pela qual passou depois do “racha” de 2019, e que requer uma explicação mais detalhada. Em março de 2019, um blog intitulado Abusos Sexuales de Prietto publicou três denúncias anônimas contra Maxi Prietto, guitarrista, vocalista e, até então, uma das metades compositivas da banda (a outra era o violonista e vocalista Santiago Moraes). A banda imediatamente anunciou a expulsão de seu fundador, mas, quinze dias depois, voltou atrás, dizendo que “com mais perspectiva e contando com mais informações, entendemos que neste caso não foram testemunhos que buscavam alguma forma de reparação, mas sim um linchamento”.
O problema é que, entre uma coisa e outra, Prietto havia admitido que as acusações, todas referentes a 2008, tinham um bom tanto de verdade. Santiago Moraes achou inadmissível que a banda deixasse o episódio por isso mesmo e se demitiu da banda. Horas depois, os percussionistas Fer Barrey e Francisco Paz também anunciaram sua saída.
Boa parte do disco “Caldero” estava gravada, mas Prietto e os integrantes remanescentes – o guitarrista Miguel Mactas, o baixista Martin Ferbat e o baterista Pipe Correa – decidiram regravar algumas faixas e incorporar outras, limando a participação dos ex-companheiros e chamando percussionistas convidados. O resultado foi um disco não apenas mais psicodélico, mas bem confuso e um tanto sombrio, onde nem a participação do nigerino Bombino trazia algum brilho. Porém, “Sancocho Stereo”, que nasceu de gravações feitas à distância durante a pandemia, já aparecia muito melhor resolvida e apontando a direção que viria a se consolidar em “La Montaña”: percussão, blues e psicodelia ainda eram a base do som dos Los Espiritus, mas agora com doses generosas de influência do que convencionou-se chamar de “blues do deserto”, um rótulo abrangente (e impreciso) que abriga mercadologicamente artistas como Bombino, Tinariwen, Mdou Moctar e outros.
Todo esse longo intervalo para explicar que sim, “La Montaña” é uma fonte de grandes canções, e esse show em São Paulo foi excelente. Mas é inegável: a banda que existia antes do racha era outra, e é perceptível ver o quanto a saída de três integrantes – Santiago Moraes em especial – fez a diferença para os que ficaram,
Mais afeito ao blues, à milonga e ao cancioneiro popular uruguaio que ao rock, Moraes era um contraponto interessante à verve indie e psicodélica de Prietto, cujo violão e voz aguda compunham uma porção significativa da identidade da banda. Esse violão faz muita falta em “Jugo”, pérola de “Aguardiente” (2017), e seus backing vocals em falsete também são uma ausência inegável pra quem conhece a banda há tempos. Pior ainda, grandes canções da lavra de Moraes, como “La Crecida” e “Perro Viejo”, foram definitivamente limadas do repertório.
“La Montaña” suavizou o que ainda soava um tanto duro e solene em “Sancocho Stereo”. As composições se permitem transitar mais naturalmente para seus refrões, há espaços para respiro nas melodias e nos riffs, o peso rítmico bruto abranda um pouco para reencontrar o suingue. E nesse último aspecto, merece destaque o trabalho de Martin Ferbat, que constrói linhas de baixo que não só sustentam a forte trama percussiva como mantém a levada à frente das canções.
Outro ponto de destaque é que “La Montaña” traz excelentes participações de Juanse (guitar hero argentino, famoso pelo seu tempo nos Ratones Paranoicos), Dana Colley (ex-Morphine) e Marc Ribot. Porém, no show as composições se sustentam perfeitamente sem a personalidade desses convidados. E quando estamos falando que o sax de Dana Colley não faz falta na excepcional “En Este Mundo No Hay Lugar”, é preciso admitir que estamos diante de um feito e tanto.
Ao fim, as dez faixas de “La Montaña” são tocadas, em meio a faixas resgatadas de todo o repertório da banda, exceto por “Sancocho Stereo”, que inexplicavelmente fica de fora (“Un Limón” ou “Buscando la Luz” teriam se encaixado perfeitamente no setlist). O hit “Noches de Verano” também foi limada de última hora, mas ainda assim, o show festivo e poderoso garantiu uma das melhores noites musicais do ano, com um público pequeno, mas bastante animado, se soltando para pogos e danças no trecho final da noite..
Com uma história acidentada, não seria exagero pensar que Los Espiritus seriam sempre uma banda “manca”, não inteiramente resolvida, e com um bom tanto de potencial desperdiçado. Porém, o quinteto atual se reencontrou com a música (e com o mercado), e hoje é um dos nomes mais importantes do rock latino-americano, com um corpo de obra sem igual e uma trajetória internacional que se estende ainda por Estados Unidos e Europa. Oferecem um dos melhores shows de rock da atualidade, e merecem estar em palcos maiores por aqui, mas foi um delicioso privilégio vê-los em um lugar mais intimista.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.