entrevista por Guilherme Lage
“Punk ae, tem punk ae?” Que perdoem o clichê, mas é impossível apresentar o Gritando HC de qualquer outra forma. A banda paulistana, que há quase três décadas mescla as ideologias iconoclastas do punk rock à fúria jovem do skate, anunciou um novo álbum “Dogmas e Dígitos”, o primeiro em seis anos, seguindo “Terra de Lobisomens” (2017). Com o primeiro single “Se Reinventar”, lançado em julho, a banda ofereceu a primeira degustação do vindouro disco, previsto para debutar em streamings e prateleiras em dezembro.
“Dogmas e Dígitos” o marca mais uma das grandes revoluções internas que sempre permearam a dinâmica do grupo. Em 2001, a primeira ressurreição, após a morte precoce do então co-vocalista, Donald. De lá para cá, a banda viu inúmeras formações, renasceu em novos discos, se expôs de corpo e alma em um documentário, que foi o segundo mais assistindo no In-Edit Brasil 2021: “Secos e Molhados e Gritando HC, fiquei até mais feliz com o segundo lugar, porque é uma honra! (risos)”, comenta Lê, a única integrante da formação original da banda.
Forjado por sangue, muito suor e lágrimas que há muito precisavam cair, “Dogmas e Dígitos” dá as caras no mundo com reinvenção sonora, parcerias, uma nova formação, mas atitude anárquica intacta. A vocalista comentou sobre o processo árduo e 100% DIY de composição do álbum. “É um disco autobiográfico e cada música tem uma história de superação, de batalha, de dor. Eu passei por isso pra caralho”, conta Lê. “É aquele disco bom de pegar o carro e curtir”, acredita. Leia a entrevista abaixo!
Ainda que após tantos anos e passadas tantas reinvenções, ainda é possível notar uma veia muito característica na música do Gritando HC. A que você acha que se deve essa assinatura sonora?
Acho que vem muito do jeito de compor, acho que o jeito de escrever acaba trazendo esta identidade de que você fala. Especificamente dessa música. “Hinos” é uma faixa em que a veia hardcore é gritante. Veio da influência do Gritando HC, já pegando uma tonalidade dos dois primeiros discos. O “Fase Adulta” (2010) e o “Terra de Lobisomens” (2017), que ficaram entre um e outro, trazem talvez algumas outras dinâmicas, acho que a forma de compor soma muito. Há muitas músicas que componho já musicalizadas, então os outros músicos na banda interpretam da formam que acham que vá fazer sentido. Já em outras músicas, primeiro vem a base para depois a letra. “Alomorfia”, por exemplo, a composição veio de todos nós, das nossas influências.
O Gritando nunca foi uma banda muito dada a dogmas, sempre fez questão de abordar assuntos diversos. De certa forma, o novo disco é autobiográfico?
É bem autobiográfico. Tanto o disco todo que gravamos, quanto a “Se Reinventar”. Há a parte política, de protesto, mas também há essa necessidade por renovação, isso é muito a identidade do Gritando. Tudo isso representa muito a história da banda, tem muito de mim ali. Eu estou na banda desde o começo, vieram muitas mudanças, todas as coisas que a gente já passou. A vida muda, e levando em consideração a nossa trajetória desde o começo, quantas vezes não tive que me reinventar? Durante o “Fase Adulta” lidei com muitas coisas que me traziam lembranças boas, do Donald, de outras pessoas. Tive que passar um filtro em mim, recomeçar e me ver em dois caminhos bem legais. Nesse disco eu me reencontro novamente, vejo que é hora de mudar e, como toda mudança, é difícil, pesado, não é fácil se reconectar com seu próprio eu. Além disso, tem todas as coisas que eu vivi de 2017 a 2019, muitos relatos pessoais de perdas de pessoas que amei muito. Há uma necessidade de mudança para o próprio bem da banda e também para o meu próprio bem. Vivo o Gritando HC 48 horas por dia, há a lógica da diversão, mas também existe uma responsabilidade muito grande que carrego e que faz eu me conectar com o mundo. É isso que eu gosto e que me faz bem, eu precisava dessa renovação, dentro de mim e musicalmente.
Como você entrou em contato com o punk rock e o hardcore? Foi ainda quando era nova? Conta como foi essa experiência.
Bom, o som vem desde nova, comecei a ouvir esse tipo de música quando entrei no meio alternativo. Conheci o punk, o que se chama hoje de alternativo, o post-punk, o industrial, toda essa coisa maluca, meio que de uma vez só. Eu tinha de 13 para 14 anos e minha relação com a música era meio maluca, sou total ovelha negra da família (risos). Venho de uma família muito grande, 5 irmãos, alguns que já infelizmente faleceram. Como sou a caçula, cresci em uma casa com muitos vinis de vários gêneros musicais. Nascemos na cultura nordestina e em casa tínhamos toda essa cultura de fogueira de São João e tudo isso. Então tinha vinis de forró, de MPB, toda a cultura brasileira. Quando nasci, meus irmãos já tinham pego muita coisa de black music, som de preto mesmo, minha irmã curtia pra caralho! Um dos meus irmãos já tinha passado para Sabbath, Def Leppard, Alice Cooper, tudo que rolava nessa geração dos anos 60 e 70. Tudo isso me influenciou muito. Eu era bem piveta, tinha que ouvir escondido, porque se arranhasse algum disco, o pau ia comer (risos). Então, como te contei, eu já curtia muita música. Quando descobri o punk rock aos 13 pra 14, eu já destoava totalmente do bairro em que eu morava. A galera achava estranho uma mina de cabeça raspada, franjão. Naquela época tinha as rádios alternativas em São Paulo, era difícil pra caralho fazer pegar. Mas numa dessas, acabei ouvindo Joy Division e aquele baixo me pegou. Na época, São Paulo era uma cidade mais fria, mais cinza, o bagulho era mais pesado, meio deprê mesmo. Eu já começava a ter meus autoquestionamentos, rebeldia, batia de frente com algumas coisas. Logo depois do Joy Division eu já trupiquei no Dead Kennedys e aí o skate entrou na minha vida. Comecei na época do Grito da Rua, em 87 ou 88, ainda era shape tubarão, na transição pro shape street. Era o máximo! Todo mundo muito novo, todo mundo muito junto e todo muito prego (risos). Foi aí que a gente saiu no rolê. Tinha também o Boca Livre, do Kid Vinil, um programa (da Tv Cultura) que (era gravado no teatro Franco Zampari, no metrô Tirandentes e) tinha que chegar bem cedo pra assistir (a entrada era de graça, mas a capacidade era limitada). Passei um ano indo lá, quase bombei na escola, cabulei aula pra caralho (risos). Vi muita banda ali, mas não vi o Cólera. Só vi eles depois de adulta, quando voltaram e o primeiro show foi justo com o Gritando HC. Naquela época também tinha muita gangue, muita treta. Então, como eu te contei, foi tudo ao mesmo tempo, sabe? Não foi aquela coisa de um brother mostrar um som legal, minha realidade é outra, foi por acaso e isso me fez virar uma chave. Foi um acaso que eu meio que procurava.
E como você encara a realidade do underground hoje em dia? O que mudou e o que melhorou em relação ao início da banda?
Tenho boas recordações, é algo que faz parte da nossa história e da minha vida, mas não era fácil. Antes da existência do Hangar, se você quisesse tocar, era uma outra realidade. Pra tocar em algum lugar, tinha que aguardar uma oportunidade. Tinha o Blackjack em Santo Amaro, tinha os picos pra tocar, obviamente, a questão era a precariedade do equipamento. Se quisesse ir um pouco mais além, tinha que se arriscar. Eu me arrisquei pra caralho, na época eu já era CLT e tinha que alugar equipamento, fazer cartaz, ingresso, lambe-lambe, ficar na responsa do aluguel do equipamento, porque tinha prazo pra devolver. Tudo isso pra elas por elas e não sair no preju, e mesmo assim, às vezes ficava. Depois que o Hangar abriu a gente sabia que tinha um ponto, um lugar que todo fim de semana ia tocar ou ver show, algo que realmente ia voltar pra cena. Antes existia uma dificuldade, uma bronca pra você poder tocar, levar a galera pra conhecer seu som, sua banda, proporcionar um rolê. Tudo tem sua trajetória, sua caminhada, e é preciso assumir a responsa que é poder ter uma abertura pra criar sua própria cena. O Gritando HC criou um esquema muito natural, mas deu certo porque a galera entendeu a nossa proposta e isso criou um legado muito legal.
Eu vi o “Gritando. Punk Rock, Skate e Underground: A História do Gritando HC.”, documentário de vocês. Como foi a ideia de fazer o filme e como foram essas etapas?
Olha, quando aconteceu aquilo com o Donald, ele veio a falecer em 2001, já havia um diferencial na história do Gritando HC. A gente estava numa ascensão que foi interrompida de um jeito muito drástico. Ainda mais pra mim, ele era meu companheiro, a gente estava junto há 9 anos. Nunca na minha vida imaginei que ia passar por uma dor tão profunda, naquela idade. Ali já deu aquela coisa de parar e falar: putz, já é diferente! Era impossível fazer algo naquela época, por causa da estrutura. O Gritando HC ia ter uma continuidade, tinha minha veia ali, da ligação que tenho com a música e eu sabia que a história tinha que se concluir por pelo menos mais uma década para ser contada. Ter a paciência de que o tempo ia contar essa história, a continuidade pode fazer isso. Até que chegamos aos 20 anos! Com 20 anos existe uma continuidade, tenho história. A gente fez uma turnê de 20 anos já com a intenção de fazer um documentário. A gente é uma das bandas que mais foi pra região Nordeste, turnê de 30 dias por lá. Foram três ou quatro turnês nos últimos 10 anos. Uma vez conhecemos esse cara, que ficou responsável de fazer as filmagens. E depois de um show, um dos nossos melhores shows, em um lugar que a gente não ia há anos, veio o banho de água fria. O cara sumiu com as minhas filmagens, de sacanagem, coisa de pilantra mesmo. Passou um ano, fomos em Recife, aí o Pablo, um amigo nosso, já tocou com a gente, disse: eu tenho um amigo, o Paulista, ele tá fazendo faculdade de cinema. Eu disse: preciso conhecer ele agora! (risos). Fui na casa do Paulista, a gente bateu um papo e ele disse que queria faze pro TCC dele: “Seria legal contar a história, vamo junto?” Foram uns quatro anos. O cara pegando avião pra pegar depoimento, eu e o Pablo passando todos os depoimentos importantes e histórias pra ele. No final de tudo, entrou uma equipe, o que fez ganhar toda uma robustez. Foi quando o Paulista chegou e me disse: “Lê, tá pronto! Vamos mandar pro In-Edit Brasil”. Faltava uma coisinha ou outra, saiu bonitinho e ele mandou para um festival na categoria amostra. E antes de qualquer coisa, ele apresentou na facul e arregaçou, tirou uma nota alta e eu falei: agora vai. Era o que precisava para a gente passar na curadoria (do In-Edit) e passamos! Pensei naquele ano anterior, a gente conseguiu. Eu me fodi, velho, tomei no cu, o outro cara fodeu meu ano, fiquei arrasada com a situação e nem precisava. Um ano depois chegou um cara que falou “vamo junto” e resolveu tudo! Na mostra de cinema foi logo arrebentando, o segundo mais assistido. Secos e Molhados e Gritando HC, fiquei até mais feliz com o segundo lugar, porque é uma honra! (risos). Eu tinha aquele disco dos Secos e Molhados, das cabeças, a primeira tiragem. Amava Ney Matogrosso, Rita Lee, tinha tudo aquilo. Aquele disco é um clássico e, para a época, é revolucionário. Toda aquela frustração que eu senti pelo que aconteceu, curou. Viver aquele momento tão especial para todos nós, para nossa história, em um momento de tanta dor como a pandemia, foi um alento. Sei que chegou no coração de muita gente. Parece que se tivesse saído antes, não seria tão especial. Muita gente me procurou e agradeceu, poder ver lembranças tão boas, coisas tão gostosas de amigos naquela época. Foi muito especial. A gente ainda planeja lançar mais coisas, estamos trabalhando um roteiro. Muita gente vem me perguntar sobre o documentário, porque não acha ele em lugar nenhum. Acontece que ele foi feito para festivais, estamos tentando disponibilizar em uma plataforma, mas não é fácil. Conseguir um espaço em uma RockTV ou canal de streaming não é um processo fácil, mas, poxa, o gênero punk rock, o hardcore, o crust, é um mercado enorme. O Brasil é um país gigantesco, qualquer lugar tem sempre alguém que faz movimentar todo um lado comercial, que tem selos que promovem shows. As bandas, o dono do lugar que vende cerveja pra caralho faz girar e também gera um vínculo empregatício enorme. Tem técnicos de P.A, fotógrafos, videomakers, galera da limpeza, da comida. Está na hora das plataformas olharem para isso e darem espaço, porque existe um público consumidor enorme. Tem um monte de documentário legal. O mercado aqui é forte, bandas daqui vão para fora e muitas bandas de fora vêm tocar aqui, no Lollapalooza, por exemplo. Quem começou a consumir tudo isso foi a galera do undeground e ninguém olha pra isso, é preciso furar essa bolha, abrir a mente. A galera do rock mainstream não olha pra isso, sentou no trono e não abre espaço para musicalidade, atualidade, ideais. Tudo isso é muito rico e não se dá o valor merecido.
Vocês estão há quase 30 anos na estrada, notam uma certa renovação no público da banda? Pessoas de diferentes idades que frequentam os shows? Como é atingir tantas gerações diferentes com o hardcore?
Isso está sendo muito visível hoje. Você descreveu exatamente o que vou te responder! Principalmente depois da pandemia veio uma geração de bandas mais jovens. Eu mesma vi várias. Antes da pandemia você via uma galera mais velha nos shows, hoje em dia é um público mais jovem. Essa é a renovação que muitas bandas falavam e não acontecia, talvez porque essa galera jovem ainda não se ligasse tanto, mas agora está acontecendo muito. Teve uma época em que havia mais banda do que público, agora eu acredito que deu uma boa equilibrada.
E para finalizar, sobre o disco novo, essa renovação. O que vocês conseguiram fazer que era uma vontade antiga? Você se sente realizada com o novo trabalho? O que mais te tocou nesse processo todo?
Olha, trazer participações foi algo que eu sempre quis e nunca consegui fazer. Nesse disco a gente conseguiu fazer exatamente tudo o que planejou, tudo deu certo. Todas as participações. Nas músicas que eu estava escrevendo, eu precisava trazer essas vozes. Elas foram escolhidas não só por ser quem são, a questão da voz, a parte técnica. Mas por pensar na música “esse refrão precisa dessa voz”. Por isso consegui furar essa bolha e finalmente contar com a participação feminina. Trazer as meninas ajudou a quebrar várias barreiras que tinha, como a própria mudança de formação e as melodias. As participações das meninas se tornam especiais, principalmente porque tem uma música chamada “Sufocar Não”, que fala muito sobre questões de relações abusivas. Não é uma coisa muito falada. Eu criei uma página chamada “Proteja-se de Abusadores”. Já tinha todo o instrumental feito e a letra na vinha, foi uma base que encasquetei e muitas meninas vieram conversar comigo e disseram “Lê, você tem voz, dá pra gente!” Essa questão que nós passamos, mulheres muito mais, são situações graves de minas que eu conheço, que por causa de uma relação abusiva tomam antidepressivos, gastam dinheiro com terapia. Outras tendo um puta gasto jurídico. Mulheres que estão há cinco, seis anos sem se relacionar. Essa página que eu criei explica, trazendo matérias de terapeutas e psicólogos sobre o que está acontecendo e que muita gente não conhece, que se chama narcisismo. Muitas mulheres são vítimas dessas pessoas narcisistas. Eu falo muito sobre esse assunto, sobre problemas de saúde, pois se você conseguir salvar pelo menos uma pessoa, muitas mulheres como eu e várias outras não teríamos passado pelo que passamos. Você enxerga a pessoa se afogando, ela deixa de ser ela mesma, até quando chega à violência física de fato e dependendo do caso, a um feminicídio, como foi com a minha irmã, em 2017. Foi uma das situações que me inspirou e eu que preciso que as minas venham cantar esse som comigo. São motivos graves, e isso é preciso ser levado a sério. A gente que tem um pouco de voz, precisa usar o máximo que tem. Não precisa salvar o mundo, mas não me acovardei, fiz independentemente das consequências e de quem gosta ou não. É um disco autobiográfico e cada música tem uma história de superação, de batalha, de dor. Eu passei por isso pra caralho, um relacionamento abusivo, houve exposição. É muito doloroso o que aconteceu. Estou aqui dando essa entrevista e me lembrando do período de pandemia. Eu disse “eu não quero pegar e fazer um disco que seja um carma coletivo, quero que a pessoa coloque o disco ali e curta. Aquela pessoa que precisa de um up, ‘vou levantar a cabeça e sair dessa’ e a gente conseguiu! É aquele disco bom de pegar o carro e curtir, tem uma música bem lúdica, fala de abdução, mas é contada de um jeito lúdico numa levada punk rock legal pra caralho. É “Voyage 87”, que é um carro que realmente existiu, que eu comprei pra levar a banda pra tocar. As músicas de protesto também estão legais pra caralho, deu pra trabalhar as letras de forma bem direta.
– Guilherme Lage (fb.com/lage.guilherme66) é jornalista e mora em Vila Velha, ES.