texto por Gabriel Pinheiro
Uma mulher caminha por uma trilha perto de casa. Em sua companhia, há apenas o cachorro e as árvores abundantes ao redor. Até então, era apenas mais uma caminhada, parte de uma rotina com poucas variações, dia após dia. Até que algo arranha a superfície da suposta normalidade onde a mulher se encontra: um bilhete no chão, rodeado por algumas pedras, impedindo-o de voar. Nele, quatro enigmáticas frases transformarão a realidade da personagem, mergulhando-a numa confusa e inusitada investigação. “Morte em suas mãos” (“Death in Her Hands”) é o novo romance de Ottessa Moshfegh, com tradução de Bruno Cobalchini Mattos, pela Todavia Livros.
“Seu nome era Magda. Ninguém jamais saberá quem a matou. Não fui eu. Aqui está seu corpo”. É com essa sequência de frases que Ottessa dá início ao romance. Tendo se mudado para aquela região há pouco, Vesta Gul não conhece nenhuma Magda, nunca cruzou ou ouviu falar de alguém com esse nome. Mas, quanto mais ela relê o bilhete, tentando descobrir se há algo a ser revelado nas entrelinhas, mais ela sente que talvez, em alguma estranha medida, a conheça. “Magda era o nome de um personagem com profundidade, com um passado misterioso. Exótico, até”.
A mulher parte, então, numa vertiginosa e nada ortodoxa investigação, guiada pelo conhecimento acumulado de romances e filmes policiais e as dicas pesquisadas pela internet. Vesta cria, assim, uma imagem de quem seria Magda, suas origens e comportamentos. Na verdade, indo além e construindo, a partir disso, o suposto autor do bilhete – que poderia ou não ser o seu assassino – e muitas outras peças que possam estar envolvidas no caso. Sozinha nessa missão, a mulher conversa o tempo todo consigo mesma – logo, conosco – já que quanto mais investiga, menos confia em toda e qualquer pessoa que cruza o seu caminho.
Há um crescente clima de paranoia na construção do livro. Na medida em que busca respostas para as perguntas que o bilhete misterioso parece carregar, Vesta nos entrega, pouco a pouco, pistas sobre o seu passado e a sequência de acontecimentos que a levaram até ali: recém-viúva, morando sozinha com seu cachorro em uma casa do lago recém comprada do outro lado do país, levando uma vida pacata e presa à rotina que dita, dia-a-dia, o curso de sua vida.
“Morte em suas mãos” é um curioso exercício investigativo. Se Vesta Gul empreende uma labiríntica jornada atrás de uma mulher desconhecida, Ottessa Moshfegh investiga, na figura dessa inusitada protagonista, temas como a identidade, a solidão e as ficções que sustentam a nossa própria realidade. Quanto mais avançamos nas páginas do romance, mais a realidade parece ser invadida pela ficção, borrando suas bordas. Quanto mais Vesta Gul parece encontrar certezas, mais nos vemos mergulhados em sérias dúvidas. Uma leitura ágil e surpreendente, que joga a todo momento com os clichês do gênero policial, subvertendo-os.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.