entrevista de João Paulo Barreto
Em turnê de comemoração dos vinte anos de “Admirável Chip Novo”, trabalho que a projetou nacionalmente em 2003, Pitty revisita e apresenta na íntegra dos shows da ACNXX Tour seu disco de estreia, que ganhou relançamento caprichado num box triplo de vinil que inclui o disco original, “Espelhos – Versões completas de Admirável Vídeo Novo” e, ainda, “Admirável Chip Novo (Re)ativado”, álbum que conta com convidados como Planet Hemp, Tuyo, Emicida, Supercombo, Ney Matogrosso, Sandy e MC Carol, entre outros, regravando as faixas do álbum em questão (num box que ainda traz um caderno com textos escritos por Pitty entre 2003 e 2004).
Mas a turnê, como bem frisa sua divulgação, não é um convite à nostalgia, mas, sim, um mergulho naquelas canções dentro do que elas representam hoje. E, de fato, o diálogo que as letras de Pitty, escritas há vintes anos, não passa despercebido quando travado diante da geração atual. Sobre esse alcance diante de uma geração nova, Pitty, nesse papo com o Scream & Yell, demonstra admiração e felicidade por suas letras ainda travarem esse diálogo atual. “Tenho observado, tenho sido espectadora dessa reação, dessa reflexão e do efeito que esse disco tem hoje, vinte anos depois. Eu procuro observar, entender, e fico admirada e muito feliz dessas letras e dessas canções terem atravessado esse tempo com tanta saúde, digamos assim. Com tanta contemporaneidade para muitas pessoas. Uma coisa que não imaginava quando fiz o disco”, destaca.
É importante salientar como as mudanças nas últimas duas décadas desde 2003 também se somam a essa reflexão. Ao observar o contexto em que Pitty despontou para o cenário rocker brasileiro, em uma época em que as redes sociais não existiam, tampouco os smartphones, e a internet ainda engatinhava, impossível não pensarmos no impacto de “Admirável Chip Novo” à época e compará-lo aos dias de hoje, com as audiências que, na maioria das vezes, assistem a shows através de telas de celulares, mesmo presentes em plateias ao vivo. Pitty, que começou sua labuta nos palcos bem antes da fama de seu primeiro disco, comenta essa tendência de público, mas frisa nesse papo aqui um respeito pela liberdade de cada pessoa.
Sobre os dois momentos nessa linha temporal e como a comunicação, além das formas de interação entre artista e audiência, mudaram no decorrer dessas duas décadas, Pitty destaca como a ACNXX usa essa tecnologia da comunicação de forma, justamente, a criar um diálogo entre as duas épocas. Mas tudo isso, de novo, sem preciosismo ou saudosismo.
Independente de sua proposta como turnê, a ACNXX acaba por permitir uma reflexão sobre os rumos que o mercado musical tomou desde 2003, seja com a internet passando a dominar os meios de divulgação, o streaming sendo a nova forma de consumo e a TV perdendo protagonismo em relação ao que se propõe como mídia. Nessa entrevista, Pitty aborda essa reflexão, bem como um pouco de sua trajetória artística, além de analisar como as mudanças dos últimos vinte anos influíram no diferente cenário musical que a lançou duas décadas atrás. Confira!
O release da turnê possui uma observação muito bem colocada que foca no seu revisitar do disco “Admirável Chip Novo” não em um movimento saudosista, mas como uma análise do trabalho cuja proposta de reflexão de suas letras se encaixam perfeitamente no mundo de 2023. Escutei seu disco depois de muito tempo e pude ir observando nas letras muitas dessas nuances que as últimas duas décadas se refletem no texto. Ao revisitar o trabalho para a ACNXX, qual foi a sua sensação ao notar esse diálogo que ele traz com a geração que, agora, tem vinte anos de idade?
Pois é. Eu tenho sentido isso, também. Tenho observado, tenho sido espectadora dessa reação, dessa reflexão e do efeito que esse disco tem hoje, vinte anos depois. Eu procuro observar, entender, e fico admirada e muito feliz dessas letras e dessas canções terem atravessado esse tempo com tanta saúde, digamos assim. Com tanta contemporaneidade para muitas pessoas. Uma coisa que não imaginava quando fiz o disco. Óbvio que todos os criadores e criadoras desejam que suas obras atravessem o tempo e permaneçam, mas eu tinha um monte de demo e um sonho (risos). E foi assim que sai de Salvador para gravar essas músicas. Então, é muito gratificante, curioso e interessante observar como essas músicas cabem perfeitamente em 2023. Para mim, elas são absolutamente atuais. Elas falam sobre agora. Acho que foram feitas para serem cantadas, também, agora.
Para mim, aos 42, essa revisita ao seu primeiro disco traz um inevitável gosto nostálgico, de uma vida mais simples, quase (risos). Sem smartphones, sem boa parte das ansiedades que os tempos fugazes de conexão têm hoje. E olha que sou um jornalista de veículo impresso, que não tem Instagram, Twitter, Tik Tok (e só mantém por pura necessidade de memes sua conta ativa no Facebook, friso). Independente de não haver essa sensação de saudosismo na proposta dessa revisita ao disco, como você avalia essa sensação de um público com o qual você dialogou tão bem no começo dos anos 2000 e, agora (pelo menos no meu caso), vai revisitar a obra com essa bagagem?
Isso é muito legal. Por exemplo, se as músicas atravessaram o tempo com essa coerência, com esse pertencimento, e se colocam de uma forma muito atual e verdadeira agora. Se com as músicas acontece isso, ao nosso redor, e talvez por causa disso, houve uma evolução nesses vinte anos do ponto de vista digital. Quando esse disco foi feito, não existia internet do jeito que existe hoje, eu acho que eu nem tinha email, era o começo. Eu tinha que ir num lugar específico para acessar a internet e mesmo para ter um computador para usar. Não era como é hoje. Quem não viveu essa época não vai entender. Normal. Eu também não tenho como saber como era quando não tinha televisão. Hoje, por exemplo, as pessoas já nascem na era do streaming. É natural para elas, para quem é jovem hoje, ou pra quem tem a nossa idade e está completamente conectado. Eu me considero bastante entusiasta da tecnologia. Ela proporciona coisas incríveis. A comunicação e tantas outras coisas mudaram demais. Isso está no show ACNXX. O conceito para montar a turnê é também trazer as pessoas para aquele lugar de comunicação. Então, eu uso, no show, interlúdios em áudio. Optei por utilizar muito mais recursos auditivos e tecidos, por exemplo, na cenografia, e fugir um pouco daquela coisa imagética, tecnológica, 4K, enfim. Eu queria trazer as pessoas para esse universo da comunicação, sem nostalgia, sem dizer que aquilo é melhor ou pior, mas situar as pessoas no tempo que esse disco foi feito. Como ele foi enviado, por exemplo. O roteiro foi montado desse jeito para que as pessoas passeiem pela história do “ACN”. Então, vou dar um spoiler já: o show começa com um telefonema de mim para Rafael (Ramos, produtor) dizendo que eu ia mandar a demo. Daí começa a história.
Citei as redes sociais na pergunta anterior para poder abordar aqui essa citada questão premonitória que a faixa título já trazia desde seu lançamento em 2003, bem como a densa ‘Máscara”. Lembro de escutá-las à época e pensar em “Clube da Luta” (1999), filme que havia conhecido quatro anos antes. Como é encarar essa proposta de diálogo diante de uma plateia que passa boa parte dos shows olhando não para o palco onde o artista performa, mas para a tela do smartphone enquanto filma para criar stories, reels e postagens em redes sociais para dizer aos seguidores que esteve presente em um show que, na maioria das vezes, não assistiu realmente?
Existe essa questão, né? Há um movimento de muitas bandas, inclusive, pedindo ou, pelo menos sugerindo, propondo (não usarem celulares no show). Eu gosto dessas palavras mais gentis em relação a lidar com o outro e com as escolhas dos outros, do público. Não vou mandar ninguém fazer nada. Não vou dizer: “façam isso!” Quem sou eu? Não sou a dona da verdade. Mas gosto dessas propostas de bandas que sugerem isso e sou entusiasta desse lance de incentivar as pessoas a assistirem ao show, a olhar para o palco, a viver aquela experiência e não assistir ao show através de uma tela. Mas, de novo, são as experiências que as pessoas escolhem viver. Algumas pessoas, não todas. Cada um faz as suas escolhas e tudo bem.
Dentro da música nessas últimas duas décadas, você testemunhou diversas mudanças no Brasil e no mundo. A minha pergunta vai por esse caminho de entender a sua visão para todas as mudanças vistas no mercado fonográfico, passando pela presença massiva da TV aberta (Faustão, Gugu, MTV etc.) na divulgação do trabalho, avançando pelas década seguinte quando a internet se tornou a principal ferramenta de divulgação, onde o streaming, infelizmente, tornou obsoleto o CD. Para alguém que criou os calos e absorveu as técnicas de palco tocando na noite, você acredita nessa potência de mercado na atualidade, com ídolos sendo fabricados por programas de TV que definem quem tem talento e quem não tem?
Realmente, nessas duas décadas passamos por muitas mudanças em termos de comunicação, tecnologia, informação e acho que todas as mídias passaram por transformações enormes. Os formatos também foram mudando. Hoje, tem menos revistas impressas, tem as redes sociais. É tudo mais no digital. As pessoas têm mais acesso a câmeras de qualidade, gravam seu próprio conteúdo, transmitem um programa ao vivo, como eu mesma fiz numa época na Twitch. Então, a mídia, hoje, não está concentrada só na mídia. As pessoas também são a própria mídia. Acho que essa foi a grande mudança com muitos desdobramentos. Por um lado democratiza, por outro lado não tem mais uma curadoria. Você não tem dicas. São milhares de músicas colocadas nos aplicativos de música diariamente. Então, onde você vai dar seu clique? Para o que você vai dedicar seu tempo? E aí as estratégias vão mudando. Hoje, as pessoas têm investido muito mais no marketing visual, digital e em fotos do que, necessariamente, na música, eu acho. O que é uma pena. Mas, ao mesmo tempo, acredito que a música boa sempre prevalece e atravessa os tempos.
Quando você olha para trás e vê essa brilhante estrada percorrida (lembro de ver você ainda em Porto Seguro – temos amigos em comum por lá – e já perceber esse potencial de sua carreira), o que você imaginaria dizendo àquela Pitty chegando à casa dos 20 e poucos anos de idade e batalhando na música independente?
Muito obrigada 🙂 Cara, não sei. Acho que eu diria: “Só vai! Continua tendo coragem, apesar de tudo apontar para o avesso”. Tudo apontava para o lado contrário. Absolutamente tudo. O lugar onde eu nasci; o tipo de música que me encanta; a arte que me toca; o que escrevo; o fato de não ser necessariamente popular, fácil; o fato de ser uma mulher; o fato de ser uma mulher nordestina. Tudo me apontava para o lado avesso. Parecia, realmente, uma coisa absurda e impossível. E me foi dito, obviamente, muitas vezes: “você está apostando numa coisa que não existe. Você está perdendo seu tempo.” E também minha condição social. Eu não tinha, ali, grana nem condições para ficar brincando de ter banda. Eu trabalho desde os 14 anos. Eu me sustento desde muito nova. Saí de casa muito nova. Então, não tinha tempo de bancar isso como um hobby. Não podia ter uma banda de final de semana. Então, foi uma aposta. E que bom que funcionou porque eu não sei o que seria de mim. Sou muito grata por viver de rock no Brasil, que eu digo que é o underground do underground. E pretendo continuar fazendo isso. Tentando aprender cada vez mais e contribuir cada vez mais para criar arte e música.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual. A foto que abre o texto é de Stephanie Hahne / Divulgação