texto por João Paulo Barreto
Marie-Antoniette, ou simplesmente Tony, se entrega à descida de uma montanha sobre os velozes esquis para neve. Parece um gesto suicida de sua parte. Mas, até o momento final, quando se machuca seriamente, sente o vento gelado no rosto, sente seus cabelos esvoaçarem de modo refrescante e, o mais importante, sente uma emoção que, apesar de saber se tratar puramente da adrenalina, ela não se importa com sua origem artificial e previsível: quer vivê-la com a maior intensidade possível.
A descrição acima se adéqua, também, a um momento anterior da vida de Tony. Ao conhecer Giorgio em uma boate, relembra-o do fato de que já o havia encontrado anteriormente. Quase como em um prólogo de sua vida que está para começar no final daquela madrugada, tomando café da manhã com aquele homem, o tempo em que foi garçonete e que o serviu vem à tona como uma lembrança antiga. É a partir deste reencontro que os dois se envolvem e a descida intensa na vida de Tony começa a se assemelhar bastante com a mesma que abre o filme, quando seu início promissor, excitante e emocionante ainda não pareceria terminar do modo traumático e amargo como acabou.
“Não se deve ter mais nada a perder para se amar de verdade. Deve-se superar as maiores alturas para desafiar esse abismo”, afirma Tony durante uma de suas audiências como advogada. E sua vida no momento em que se envolve com o bom vivant Giorgio se assemelha muito àqueles fatos. São dias exuberantes, de alegria contagiante, de sexo intenso, de emoções que não lhe cabem. Os sorrisos são constantes e os planos para o futuro não poderiam ser melhores. A gravidez não tarda a chegar e os planos felizes parecem se multiplicar dia após dia.
Neste ponto, ainda durante a gestação, aquele relacionamento sofre seu primeiro revés, com a necessidade de Giorgio em cuidar de uma ex-namorada suicida começando a influenciar negativamente a sua relação com Tony. As crises se iniciam, as brigas também, e a violência e gritos entre os dois só é apaziguado com a chegada de Simbad, o bebê que nasce com um olhar sério e beleza impar. Os dias parecem novamente esperançosos, mas, claro, sabemos se tratar apenas de uma trégua. Na distância física de Giorgio, que viaja a trabalho, ou em sua necessidade de manter-se sempre em festas, como se ainda tivesse vinte e poucos anos, outros reveses daquela relação.
“Meu Rei” (“Mon Roi”, 2015), de Maïwenn, em certos aspectos lembra “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” e seu modo de exibir os vestígios e desgastes de uma relação, quando o desrespeito mutuo suplanta sorrisos e carícias. No entanto, aqui, não há nenhuma outra opção além de encarar aquelas dores. Na pele de Giorgio, Vincent Cassel traz uma jovialidade comum aos seus personagens. Um carisma que se perde ao passar do tempo. Já em Emmanuelle Bercot, vemos na sua Tony um olhar de curiosidade e insegurança, algo que, gradativamente, se transforma em decepção e tristeza. É um filme que demonstra de modo áspero como um relacionamento pode se tornar tão pernicioso, ao ponto de até mesmo a coisa mais bela oriunda dele, uma criança, não ser mais capaz de torná-lo válido de qualquer esforço em mantê-lo.
Enquanto vemos Tony se recuperar de sua grave lesão no joelho em uma clínica especializada e suas memórias nos levar às lembranças daquela irrecuperável relação, notamos como aquelas duas fases de sua vida se complementam, sendo que apenas uma é passível de se obter algum êxito. Entre ela e Giorgio pouco se salva. E a aspereza que fica para trás reverbera naquele relacionamento que sempre estará ligada por conta da vida que os dois criaram e compartilham.
O silêncio passivo agressivo de Giorgio em seu momento final junto a Tony deixa claro, no entanto, que aquelas lesões nunca irão se curar.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.