texto por Renan Guerra
Varsóvia, Polônia, maio de 1983. O estudante Grzegorz Przemyk, 19 anos, sai para as ruas com os amigos para celebrar o bom resultado de suas provas finais da escola. No meio da rua, eles são parados pela polícia em uma abordagem de caráter bastante duvidoso. Após isso, Grzegorz e seu amigo Jurek são levados para a delegacia. Em uma sequência de violência e exagero, Grzegorz é espancado com tamanha força que os ferimentos internos o levariam a morte no dia seguinte. Essa é a premissa inicial sobre a qual se desenvolve “Sem Deixar Rastros” (“Żeby nie było sladów” no original), drama polonês de Jan P. Matuszyński, em cartaz nos cinemas brasileiros.
O longa, que já havia sido exibido por aqui na Mostra de São Paulo de 2021, e que foi o escolhido pela Polônia como seu representante na categoria de melhor filme internacional do Oscar, é um retrato duro e complexo sobre a violência totalitarista do regime comunista polonês. Nesse cenário, “Sem Deixar Rastros” começa com os típicos letreiros de “esta é uma história inspirada em fatos reais” e um aviso de que alguns personagens e acontecimentos foram modificados pela necessidade artística da narrativa. Com uma duração longa e lenta, o filme se centra essencialmente na narrativa do caso em si, o que deixa de fora uma contextualização mais ampla dos cenários em que essa história se constrói.
Vamos a aula de história: em 1944, a Polônia se torna um país comunista, sob o nome República Popular da Polônia, passando a fazer parte da Cortina de Ferro, bloco de países aliados da União Soviética. Estado-membro fundamental do Pacto de Varsóvia, a Polônia passou por todos aqueles cenários de embates da Guerra Fria e é nesse universo que se estabelece a figura de Barbara Sadowska, mãe de Grzegorz Przemyk e proeminente nome da poesia polonesa, bem como ativista política anticomunista, alinhada ao partido democrático de oposição. Esse contexto pode fazer falta para alguns espectadores do filme, pois esse cenário é fundamental para as imbricações políticas do caso. Seria o assassinato de Grzegorz uma retaliação da polícia polonesa frente as ações políticas de sua mãe?
“Sem Deixar Rastros” se estabelece pela perspectiva de Jurek Popiel, o melhor amigo de Przemyk e a testemunha ocular da violência policial. A partir daí se forma uma narrativa entre o thriller policial e o filme de tribunal: acompanhamos Jurek tendo que se esconder da polícia polonesa, os meandros do caso judicial, bem como somos apresentados a todos os passos assumidos pelo governo comunista na tentativa de acobertar os verdadeiros assassinos de Przemyk. É nisso que temos uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo em que se desenrola uma narrativa absurdamente envolvente e tensa, que nos deixa nervosos na poltrona do cinema, o filme tem em seu encalço o fator de ser uma história real sobre injustiça, por isso mesmo sua longa duração (2h39) o transforma quase em uma experiência torturante, que causa desconforto e incômodo.
Não se trata aqui de suavizar os fatos reais, mas o foco intenso no embate judicial poderia ser melhor dosado com uma humanização maior de seus personagens. Jurek, por exemplo, tem poucas nuances: ele é a testemunha do crime e quer honrar seu amigo, e só. Nas quase três horas de filme, vamos apenas juntando poucas outras informações sobre ele. Barbara Sadowska é outra personagem complexa e dúbia e que poderia ser melhor explorada. Tomasz Kietek e Sandra Korzeniak, os respectivos atores, constroem nuances complexas de seus personagens, mas de algum modo o próprio roteiro do filme nos distancia deles, focando muito mais em dar tempo de tela a uma construção quase caricatural dos vilanescos comunistas.
A história narrada em “Sem Deixar Rastros” é muito maior do que o seu próprio filme e, no final das contas, é ela que nos mantem presos a trama. O assassinato de Przemyk se dá nesse contexto específico de comunismo e guerra fria, mas sabemos bem que poderia acontecer (como repetidas vezes acontece) no cenário de capitalismo tardio norte-americano ou mesmo em um cenário que envolvesse a polícia militar brasileira. Sua longa duração e suas escolhas narrativas quase diminuem o impacto do filme de Jan P. Matuszyński, mas o saldo final ainda é um thriller tenso e duro sobre como a tirania e todos os seus meandros agem, envolvendo mentira, corrupção e abuso de poder.
É na violência e na crueza da realidade, com todas as suas injustiças, que “Sem Deixar Rastros” se fortalece, pois infelizmente é um filme histórico que pulsa o presente de uma forma mais forte do que gostaríamos de admitir.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.