texto de Davi Caro
Criado na década de 1930 e originalmente publicado pelas extintas editoras Fox e Charlton Comics, “O Besouro Azul foi incorporado à DC Comics somente em 1985 como um dos personagens centrais da maxi-saga “Crise Nas Infinitas Terras” (doze edições em 1986). Na DC, o herói passou por uma reformulação que o distanciava de sua encarnação original e o reapresentava à um público que tinha pouco interesse por personagens tão antigos e antiquados – especialmente numa época em que obras como “O Cavaleiro das Trevas”, de Frank Miller, e “Watchmen”, de Alan Moore, quebravam paradigmas e redefiniam os limites das HQs como obras de arte junto ao consciente coletivo. Por anos tido como um personagem coadjuvante em histórias de maior impacto (como a própria “Crise”, ou o grande golpe de publicidade que foi “A Morte do Superman”, em 1992), o Besouro Azul permaneceu por anos como um “herói lado B”, cômico demais para ser um dos protagonistas, porém com uma mitologia grande demais para ser totalmente esquecido.
Não deixa de ser revelador que “Besouro Azul” (“Blue Beetle”, 2023) chegue aos cinemas ao mesmo tempo em que a DC (junto à Warner) passe por outro tipo de crise: em meio ao encerramento do confuso universo expandido iniciado por Zack Snyder em seu “Homem de Aço” (2013) e iniciando um novo período de produções interligadas sob o comando criativo de James Gunn (da franquia “Guardiões da Galáxia” e de “O Esquadrão Suicida”), o novo filme, dirigido pelo porto-riquenho Ángel Manuel Soto e com Xolo Maridueña no papel-título, não é diretamente conectado às produções anteriores do chamado DCEU (dos fracassos de crítica e bilheteria “Shazam: Fúria dos Deuses” e “The Flash”, também de 2023) e tampouco funciona como o primeiro capítulo do novo universo cinematográfico capitaneado por Gunn. Em mais de um sentido, portanto, “Besouro Azul” é um ponto intermediário, para o bem e para o mal.
Jaime Reyes (vivido por Maridueña) é um jovem recém-formado de origem latina que retorna à sua cidade natal, a fictícia Palmera City, para encarar um dilema: a oficina automotiva de seu pai (Damián Alcazar) está à beira da falência, e sua família (os pais, a irmã, Milagro, mais a avó e o tio Rudy) tem os dias contados para evacuar sua casa, sem condições de bancar o aluguel. Ao mesmo tempo, muitos dos imigrantes residentes na cidade se veem oprimidos e acuados pela poderosa organização Kord, encabeçada pela herdeira Victoria (Susan Sarandon), que tem planos insólitos: após o misterioso desaparecimento de seu irmão, Ted, ela resolveu retomar as atividades armamentistas da empresa ao mesmo tempo que busca obter um curioso escaravelho de origem alienígena e que seu irmão, junto com o antigo mentor, passou anos estudando.
A fim de utilizar o artefato para desenvolver um novo sistema de policiamento repressor chamado de OMAC, Victoria acaba entrando em conflito com a sobrinha, Jenny Kord (vivida por Bruna Marquezine), que se opõe aos planos maquiavélicos da tia. Os caminhos de Kord e Reyes inevitavelmente se cruzam, e, ao atender a pedidos da primeira para manter o escaravelho seguro, Jaime acaba sendo escolhido pelo besouro extraterrestre (em si um veículo para a entidade Khaji-Da), que se funde com o garoto e lhe confere uma armadura capaz de voar e de materializar quase todos os tipos de armas de combate, além de ser a prova de balas e projetado para proteger seu (relutante) hospedeiro. Agora forçado a assumir a responsabilidade de proteger sua família ao mesmo tempo em que utiliza seus novos dons para o bem (e os mantém longe de Victoria e seus planos nefastos à medida que a simbiose com a entidade cresce), Reyes se vê em um dilema que o irá moldar como o novo herói de Palmera City, bem como assumir um legado muito maior do que é capaz de imaginar, que possui ligações diretas com Jenny e seu pai.
Se a história parece familiar, é porque o esqueleto de “Besouro Azul” é muito, muito parecido com praticamente todos os filmes de origem do gênero lançados nos últimos 20 anos. Todos os passos seguidos pelo jovem Reyes em direção à sua vocação heróica ecoam diretamente aqueles vistos em outras produções – da apresentação do personagem como altruísta e de bom coração, passando pela descoberta acidental de seus novos poderes e os desastrosos primeiros testes de suas novas habilidades, cruzando os dilemas morais e sacrifícios inerentes a todo salvador mascarado e chegando à previsível batalha final, com direito a redenções mal exploradas e explosões monumentais. Por este prisma, “Besouro Azul” é um filme cravejado de clichês, que mostra claras e respeitáveis tentativas de fugir do óbvio apenas para cair no mesmo balaio que já nos trouxe algumas das melhores adaptações de quadrinhos no cinema. “Com grandes poderes vem grandes responsabilidades”, eu e você e todo mundo já sabemos, e estamos cansados de saber.
Algumas destas tentativas, porém, reluzem como ouro em meio a um roteiro que joga apenas pelo seguro. Maridueña brilha no papel principal, exalando carisma tanto nas cenas mais cômicas quanto em momentos mais reflexivos e sérios. O desenvolvimento do jovem ator após várias temporadas à frente da impressionante “Cobra Kai” é notável, e seu abandono na pele do jovem Reyes é o motor que impulsiona o filme, numa escolha acertada que faz jus a esta encarnação do personagem, muito elogiada pelo público desde sua primeira aparição, em 2006. O mesmo, no entanto, não pode ser dito de Susan Sarandon como a principal antagonista; sua Victoria Kord é caricata ao extremo, com motivações interessantes, porém pouco exploradas, e com uma conclusão sofrível de tão previsível, o que é decepcionante em se tratando de uma atriz do calibre de Sarandon. Muito mais destaque é merecido pelos membros da família de Jaime, que possuem graus diferentes de brilho sob os holofotes: ainda que a mãe, Rocio (Elpidia Carrillo) não tenha tanta presença, os outros parentes, sobretudo Rudy (George Lopez) e Milagro (Belissa Escobedo) se sobressaem em momentos ora dramáticos, ora hilários, sobretudo pelo sarcasmo cortante da última e pelo comportamento exagerado e desbocado do primeiro.
Já a “nossa” Bruna Marquezine (cuja personagem no filme também é brasileira) tem um desempenho que não chega aos pés do que poderia ser, com tempo de tela inversamente proporcional ao potencial de sua Jenny Kord. Também demonstrativo do desequilíbrio entre os personagens é a presença de Raoul Trujillo e de Harvey Guillén, interpretando o antagonista Ignacio “OMAC” Carapax e o cientista Dr. “Sanchez”, que trabalha contra sua vontade para Victoria, cujo desprezo à impede de se importar com o nome real do personagem: ao mesmo tempo em que Carapax é desenvolvido como o típico vilão sem personalidade apenas para ter uma apressada apresentação de motivação ao fim, Guillén (egresso de seu ótimo papel em “What We Do In The Shadows”, do FX) é lamentavelmente desperdiçado.
Nem tudo são clichês reaproveitados, porém, e o segredo do relativo êxito de “Besouro Azul” está na maneira como o filme abraça a latinidade inerente aos personagens. Ainda existem vários acenos à persistente discriminação contra imigrantes latinos nos EUA, mesmo que as menções e referências mais proeminentes sejam mais lúdicas: a trilha sonora explora com sucesso ritmos como cumbia e salsa, e citações que vão do seriado Chapolin à telenovela Maria do Bairro devem arrancar sorrisos e gargalhadas de muitos.
Tudo isso, junto com o próprio uso extenso de espanhol nos diálogos (sobretudo por parte da avó de Jaime) faz com que o filme consiga romper, mesmo que brevemente, as amarras dos recursos de roteiro reciclados de outros filmes e abra caminhos para que, com sorte, o herói principal possa construir um espaço para si dentro do vindouro novo universo cinematográfico da DC (com cenas pós-créditos sinalizando novas aventuras de Reyes por vir). Apesar de soluções formulaicas e elementos familiares, o saldo final de “Besouro Azul” é mais positivo do que negativo: um filme que não inova ou surpreende, mas que cumpre bem a função de entreter, divertir e empolgar sem precisar apelar para tramas grandiosas ou apelos ao Multiverso – algo como o melhor filme de 2007 lançado em 2023, para o bem ou para o mal.
Leia também o texto de João Paulo Barreto sobre “O Besouro Azul”
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo
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