texto de João Paulo Barreto
Em sua busca por adaptações rentáveis e que cativem maiores públicos, a DC Comics, junto à “empresa-mãe” cinematográfica Warner Bros., conseguiu poucos resultados positivos que conciliassem tanto sucesso de crítica quanto de bilheteria. Seja em seu primeiro escalão de super-heróis, com o recente “The Flash” (2023), uma ótima, apesar de (em termos de bilheteria) mal sucedida aventura, ou em constrangedoras produções estreladas por personagens não muito conhecidos do grande público, como o original “Esquadrão Suicida” (2016), a editora dona das franquias do “Superman” e “Batman” acabou não angariando os mesmos louros de sua rival de mercado no quesito de trazer às telas figuras não muito notórias na cultura pop.
Do lado de lá, a citado rival Marvel Studios/Comics, cujo investimento tanto em infinitas séries de TV quanto em intermináveis (e, convenhamos, já cansativas) sequências de produções de cinema, têm se mostrado sagaz na atual missão de cativar jovens audiências pouco exigentes e que gerem cada vez mais engajamentos em redes sociais e views em serviços de streaming. Sim, qualidade fica em terceiro lugar no atual conceito de entretenimento dos filmes de super-heróis. O que importa é o falatório. Mas não cabe à crítica de cinema analisar resultados de planilhas de custos que comparem investimentos e retornos para grandes estúdios. Isso, deixa-se para os influencers, youtubers e criadores de conteúdo de timelines em redes sociais e de hastags. Dessa forma, esse preâmbulo tem como única intenção ilustrativa, além de desenhar um rápido panorama do foco atual de duas gigantes do entretenimento, abordar a ideia de trazer à vida um personagem do segundo escalão dos quadrinhos como modo de popularizá-lo para grandes audiências e como isso tem sido uma aposta arriscada para grandes estúdios.
O Besouro Azul original foi criado em 1939 por Charles Nicholas Wojtkoski para a Fox Comics, comprado pela Charlton Comics em 1954, que criou um segundo Besouro Azul – com histórias escritas por Steve Ditko (sim, a lenda que co-inventou o “Homem-Aranha” da Marvel explorou novamente o filão de insetos heróicos na casa ao lado) – que foi adquirido pela DC Comics em 1985. Com o decorrer dos anos, o personagem desenvolveu um aspecto de trapalhadas e constantes piadas galhofeiras. Essa característica foi aprimorada como um dos apelos cômicos da fase dos quadrinhos escritos pela dupla Keith Giffen e J.M. Dematteis, período mais popular do personagem. Foram tais artistas que, no final da década de 1980 e começo da seguinte, assumiram as páginas da Liga da Justiça, equipe da qual o cientista milionário Ted Kord, identidade secreta do Besouro, fazia parte. Inserindo toques de humor muitas vezes non sense, piadas com metalinguagem (anos antes de Deadpool, válido frisar), conseguiram gerar um sucesso de vendas dos gibis da equipe.
Porém, não é esse Besouro Azul que temos aqui. Na adaptação oficial do personagem que agora chega aos cinemas, o foco é em sua reformulação proposta pela DC Comics em 2006, quando, em mais uma de suas infinitas crises temáticas que se tornam sagas, a editora inseriu nas suas páginas de quadrinhos o personagem de Jaime Reyes, um adolescente de ascendência mexicana que vive em El Paso, Texas. Após encontrar o escaravelho, peça mística que caiu da Rocha da Eternidade, Jaime tem seu corpo fundindo à peça (que se aloja em sua coluna) e passa a criar uma simbiose com o ser, que é capaz de gerar uma armadura que o protege e permite ao rapaz moldá-la com um simples pensamento, transformando-a na máquina de combate perfeita.
Mas com as devidas alterações nessa origem, o filme dirigido por Angel Manuel Soto, que tem em “Besouro Azul” (“Blue Beetle”, 2023) sua primeira produção dentro de um grande estúdio, consegue captar boa parte do humor advindo da clássica presença dos quadrinhos de um personagem de collant azul, cueca por cima da calça e pneuzinhos salientes (e todas as piadas que isso pode gerar) e trazer o necessário upgrade high tech que o atual conceito de filmes de super-heróis exige.
Diante de um protagonista hispânico, um diretor oriundo de Porto Rico, uma atriz brasileira a interpretar o par romântico (Bruna Marquezine cumprindo bem a responsabilidade de atuar cara a cara com a gigante Susan Sarandon), “Besouro Azul” se torna a oportunidade ideal da DC/Warner criar o primeiro super-herói latino a ilustrar suas histórias no cinema, algo que Xolo Maridueña, ator que vive Jaime, entende tal significado simbólico e se esforça para estar à altura. Carismático e com bom timing cômico, Maridueña capta com Reyes uma insegurança que, gradativamente, cresce em sentido oposto de maneira a gerar uma firmeza à medida que o roteiro se desenvolve.
Nesse processo, a citada comicidade do filme fica sob responsabilidade da família de Jaime. Inicialmente caricatos em sua presença repleta de trejeitos de espontaneidade carinhosa que a trama parece querer vender como algo oriundo da origem mexicana daquelas pessoas, o grupo de atores a representar pais, tio, avó e irmã do herói surge em cena de modo estereotipado, o que poderia ser um problema para uma produção lançada em tempos politicamente corretos e de apelo cultural justamente latino. Mas essa impressão acaba sendo suplantada.
Ocorre que o roteiro de Gareth Dunnet-Alcocer escolhe desenvolver aquele núcleo cômico dentro de costumes familiares calorosos justamente para poder subvertê-lo em certo momento do filme, o que, diante da tragicidade da perda e de uma série de referências ao México revolucionário contra as nefastas forças imperialistas, acaba sendo uma saída narrativa bem eficiente para a utilização daquele grupo de personagens que agem no filme com uma perceptível unicidade. E nesse destaque, a presença de Adriana Barraza, indicada ao Oscar por “Babel”, filme dirigido por Alejandro Iñárritu em 2005, revela uma surpresa hilária que demonstra bem a razão dessa caricatura proposital. Mas antes do peso do trágico suplantar a graça daquelas pessoas, referências a novelas mexicanas como “Maria do Bairro” e ao maior super-herói de todos, o Chapolin Colorado, já fizeram a graça para o público brasileiro tão familiarizado com essas figuras.
Com uma Susan Sarandon no piloto automático e fazendo valer a veia Doctor Evil capitalista e imperialista bélica no papel de Victoria, irmã nefasta do desaparecido Ted Kord, “Besouro Azul” prefere focar, então, na presença vilanesca de Conrad Carapax, soldado membro do exército das indústrias Kord. E, aqui, mais uma vez o filme capta o simbolismo de se tratar de uma obra que tem a latinidade como espinha dorsal e, na presença dramática de tal vilão em sua resolução e revisita a um passado doloroso, insere um significado de peso como crítica à indústria armamentista e exploratória que a influência estadunidense trouxe a países pobres durante o século XX. Se os gringos ianques vão entender tal alfinetada, bem como a graça da presença cativante das anteninhas de vinil do polegar vermelho, este, sim, o primeiro super-herói latino, essa é uma outra história.
Leia também o texto de Davi Caro sobre “O Besouro Azul”
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.