texto de Davi Caro
Ao longo das últimas quatro décadas, Maria da Graça Meneghel viveu muitas vidas, todas quase ininterruptamente aos olhos do público. A maioria a conhece por causa dos programas que passou a apresentar, nos anos 80, na Rede Globo, mais dedicados ao público infantil; outros se lembram dela primeiro por causa dos esmagadores sucessos musicais colecionados ao longo de LPs que venderam aos montes; alguns se recordam dos vários filmes que estrelou, ao lado de elencos ilustres, que hoje em dia acabam se valendo mais de um intenso sentimento de nostalgia; e alguns a enxergam como algo parecido como uma lenda urbana viva – algo alimentado graças aos rumores de mensagens subliminares gravadas em discos e somente audíveis quando rodadas ao contrário (história, aliás, que Xuxa retomou em uma divertida peça publicitária da série “Stranger Things” – assista abaixo).
E, ainda assim, uma versão de todas estas narrativas permanecia silenciosa, ou ao menos mais discreta: a da própria protagonista. Com seis décadas completas de vida, Xuxa enfim demonstra se valer da perspectiva e dos anos de experiência para falar sobre suas muitas facetas e vivências sob seu próprio ponto de vista. “Xuxa: O Documentário” (2023), minissérie documental em cinco episódios com direção geral de Pedro Bial (que conduz as muitas entrevistas utilizadas), põe as cartas na mesa e, de um modo geral, consegue clarificar inúmeros detalhes que permeiam uma das mais onipresentes personalidades da história da cultura pop brasileira – em uma trajetória feita de muitos êxitos, erros, dúvidas e trabalho, e com uma dose generosa de mistério e pertinência.
O primeiro episódio opta por não se iniciar nos primeiros anos de vida da apresentadora, centrando foco no início de seus trabalhos na TV. Inicialmente conduzindo sozinha um programa infantil na extinta TV Manchete, Xuxa acabou cooptada pela TV Globo graças aos altos pontos alcançados no Ibope, o que não passou despercebido ao ex-presidente da emissora, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, mais conhecido como Boni. É do todo poderoso global que vem a frase que talvez melhor explique sua relevância e o apelo longevo: “Ela não imitava as crianças, e sim o contrário”. Valorizando o magnetismo da jovem ao mesmo tempo em que via o declínio do outro programa infantil de impacto da época (o Balão Mágico), Boni ajudou a delinear o formato que seria para sempre associado a ela: manejado em grande parte por mulheres, contando com efeitos cenográficos de Reinaldo Weisman e apresentando as hoje lendárias Paquitas, o Xou da Xuxa estreou em 1986, com repercussão estratosférica e estratégias de divulgação como nunca se haviam visto. A marketização do sucesso imenso veio com discos lançados pela Som Livre (produzidos pela dupla Michael Sullivan e Paulo Massadas), desenhos animados e shows lotados em estádios e ginásios por todo o Brasil. Para contextualizar, dos 10 discos mais vendidos em todos os tempos no Brasil, quatro são de Xuxa e somam 12 milhões de cópias vendidas.
Era só uma questão de tempo até os níveis de popularidade de Meneghel chegarem a outros países, sobretudo na América Latina; seus programas começaram a ser veiculados em países como a Argentina e o Uruguai, onde a já famosa “Rainha dos Baixinhos” passou a inspirar fervorosas multidões e a causar alvoroço por onde passava. Alvoroço, inclusive, foi um elemento que não faltou na jornada da gaúcha, que chegou a ter programas transpostos para a televisão norte-americana (para felicidade de Este Haim, que cantou “Ilariê” no MITA Festival e se encontrou com Xuxa no Rio). Em meio a muitos boatos sobre possíveis casos com John F. Kennedy Jr. e encontros com Michael Jackson (que, nas palavras da própria Xuxa, chegou a propor um contrato no qual a brasileira seria responsável por gerar seus filhos), os planos para o que prometia ser uma rentável carreira foram abaixo após uma planejada aparição no programa Good Morning America não acontecer, com Xuxa sendo acometida por problemas de saúde (decorrentes, segundo insinuado, de seu intenso ritmo de trabalho à época), cancelando sua participação e retornando ao Brasil.
Alguns dos momentos mais aguardados (e comentados) da série começam a vir à tona em seu terceiro capítulo, apropriadamente intitulado “Trabalho, Amor, Morte e Fogo”. Documentando de forma extensa e detalhada seu breve e muito noticiado relacionamento com Ayrton Senna, trata-se de um dos pontos mais controversos da produção: embora Xuxa (e muitos de seus associados) falem de forma cândida e aberta a respeito do piloto e da tragédia de sua morte, em 1994, é difícil não reparar nas veladas mas duras referências à então nova namorada e também apresentadora Adriane Galisteu, sobretudo da parte da irmã de Senna, Viviane, que diz que Xuxa foi o grande amor verdadeiro da vida de Ayrton. A protagonista, por sua vez, se limita a falar sobre como viveu “praticamente como viúva” mesmo não o sendo (tendo terminado seu relacionamento com o campeão de Fórmula 1 tempos antes de seu acidente fatal), num processo longo de aceitação da perda. A mudança maior, porém, vem com o nascimento da filha, Sasha, em 1998, fruto da relação de Xuxa com o também ator e modelo Luciano Szafir. Num processo coberto extensivamente pela imprensa e pela grande mídia brasileira, a chegada da criança acabou acarretando um processo que Meneghel hoje vê como similar a “uma violência, uma superexposição” que a marcaria pelos anos a frente, e que mostra a disposição de Xuxa em reavaliar situações com as quais foi conivente, e que poderiam ter sido evitadas.
A peça central da série, porém, já foi muito debatida e continuará sendo muito discutida: o reencontro com a ex-empresária, Marlene Mattos, responsável por gerenciar a carreira da atriz e apresentadora durante seus anos de ascensão, e com quem Xuxa rompeu relações profissionais há quase 20 anos; a produção se encarregou de reunir as duas pela primeira vez desde sua separação, e trouxe a oportunidade a Meneghel de questionar muitos dos comportamentos da antiga companheira que, em retrospecto, podem ser vistos como abusivos e cruéis: desde comentários rudes e agressivos até o ato de trancar sua gerenciada em quartos de hotel e tentar interferir em seus relacionamentos amorosos e de amizade. Mattos, que também é acusada de traumatizar muitas das meninas que atuaram como Paquitas ao longo dos anos, e inclusive de insinuar que Xuxa não seria um ídolo longevo por não morrer jovem, admite muitas das coisas apontadas, ainda que mostre pouco arrependimento: a empresária parece ver no sucesso contínuo da apresentadora a justificativa para seus métodos muitas vezes severos e impiedosos, ao mesmo tempo em que Meneghel mostra resignação com a própria parcela de culpa por ter sido conivente com tais comportamentos e com a manipulação de Marlene. O mesmo nível de reavaliação é atribuído a ela ao próprio pai, que criou a ela e aos irmãos com a rigidez típica de um patriarca militar da época – algo que gerou um distanciamento de anos e que seria quebrado, graças a Marlene e sem o consentimento da apresentadora, ao vivo diante das câmeras, num movimento que, Mattos admite, foi articulado porque atraía Ibope.
As relações familiares são mais aprofundadas no último capítulo, que traz o título “Uma Velha Chocante”. Nele, a personagem central se aprofunda nas memórias de seu início, em desfiles de moda em sua cidade natal de Santa Rosa, RS. Ali, Xuxa deixa transbordarem as memórias de quando foi abusada por diversas vezes ao longo da infância e adolescência, inclusive pelas mãos daquele que seria o marido de sua avó. Trazendo imagens do depoimento prestado por ela ao Fantástico em 2012 (quando a história de seus abusos foi tornada pública pela primeira vez), o segmento sensibiliza sobretudo nas falas mais recentes de Meneghel, que menciona os muitos (infelizes e maldosos) comentários recebidos de pessoas que viam sua fala como uma ação para “chamar a atenção”. Ao remontar a suas origens pessoais e profissionais (com maior foco também em sua relação com Pelé, com quem começou a namorar aos 19 anos – enquanto o jogador já contava 42 primaveras), Xuxa traça um paralelo com sua realidade atual: aceitando seu corpo como é, desfrutando da liberdade conquistada ao longo de muitos anos de dedicação, e inclusive não deixando de citar sua saída da Globo e subsequente entrada na Record, num período do qual fala com carinho e respeito. Seja abordando seus projetos beneficentes de assistência à criança (reflexo do trauma de sua própria infância); as perdas, em rápida sucessão, de seus pais, de seu irmão e seu cachorro de estimação (além de sua assistente de longa data e de sua irmã, que pereceram após as filmagens de depoimentos); ou mesmo seu longevo namoro com o cantor e compositor Junno, Xuxa mostra maturidade e segurança mesmo quando o assunto são alguns dos piores momentos de sua vida.
Os depoimentos são um demonstrativo do quão bem a artista circulou em meio aos mais diversos ciclos, e são vitais para o resultado final: as imagens mais recentes contam, além de familiares e dos já citados Boni, Weisman, Szafir, Sullivan, Massadas e Viviane Senna, com os ex-colegas e amigos Renato Aragão e Sérgio Mallandro, a também modelo Luíza Brunet, a apresentadora Angélica, a ex-Paquita e atriz Letícia Spiller, e com fãs tanto do Brasil quanto da Argentina, o que ajuda a ter maior dimensão do impacto causado pela Rainha dos Baixinhos. As imagens de arquivo utilizadas no fim também garantem aparições que vão de Rita Lee e Hebe Camargo até o compositor Tom Jobim, o escritor Jorge Amado e o ex-presidente da Argentina, Carlos Menem. Uma presença alheia, porém, se faz presente o tempo todo: a do diretor Pedro Bial, que entrevistou Xuxa pela primeira vez em 1987 e é ouvido (e visto) em muitas das entrevistas, onde a edição preservou as perguntas feitas, e a quem Meneghel se refere por nome diversas vezes. Enquanto compreensíveis e coerentes, as aparições de Bial podem ser sentidas por muitos como intrusas, e podem distrair em determinados momentos. A série, porém, não deixa a desejar, especialmente no uso de imagens de arquivo – muitas delas raras, ao mesmo tempo que outras (como as filmagens do catastrófico incêndio no programa Xuxa Park, em 2001, onde quase 30 pessoas ficaram feridas e abordado no terceiro episódio) parecem impressas nas mentes de praticamente todos os brasileiros.
O fato é que Xuxa Meneghel hoje se esforça para fazer as pazes com seu passado, demonstrando se sentir bem para seguir fazendo o que sempre fez: entreter pessoas e arrebatar legiões de fãs que se estendem por gerações, sem, mais do que nunca, deixar de ser fiel a si mesma. Seu trabalho mais recente, como co-apresentadora do reality show “Caravana das Drags” (disponível no Prime Video) é prova da liberdade e da dedicação da apresentadora para com seu trabalho sem nunca deixar de lado questões relevantes, e que entretém ao mesmo tempo que podem (e devem) levar a refletir. É complicado pensar se um dia haverá outra como ela: poucas vezes na história da cultura pop nacional (ou até internacional) se viu uma comunicadora capaz de povoar o imaginário de tantas pessoas de tantas faixas etárias ao longo de tantas épocas diferentes – fosse das crianças que aprenderam as coreografias de “Ilariê” (ou mesmo as que, como este que vos fala, ganhou um CD da Eliana da avó quando criança, e não da Xuxa), dos (pré-)adolescentes que assistiam os desenhos apresentados por ela, ou dos adultos, escandalizados por causa daquela polêmica cena em “Amor Estranho Amor”.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo