texto por Marcelo Costa
fotos por Fernando Yokota
Música ao vivo é uma coisa ampla, quase que infinita, um “lugar” que abriga tanto aquele artista de rua tocando por alguns trocados (assististe ao episódio em que Ted Lasso salva uma festa?) quanto o artista que toca Djavan num barzinho (quando o que você mais queria era silêncio) até os artistas mil que se apresentam em “casas de shows” (muitas delas, improvisadas) de variados tamanhos e estruturas tanto quanto aqueles que fazem parte do circuitão tocando em espaços renomados quando não em estádios. No fim, tudo é música, e, claro, as expectativas influenciam (para o bem e para o mal), mas o que nos traz aqui, a esse texto, também envolve indústria cultural, mercado e música como forma de conexão com outras artes.
Ok, talvez na ânsia de fazer um recorte para tentar falar sobre a grandiosidade de um pequeno espetáculo, a coisa toda tenha se ampliado novamente, então, papo reto, pois a questão aqui se agarra muito em pensar um disco, produzi-lo, coloca-lo no mercado e cair na estrada: o que diferencia aquele artista que lança um disco e faz shows para divulga-lo apoiando-se na ideia de que a música sobrevive por si só (e, sim, ela sobrevive), sem necessitar de subterfúgios (no máximo um pano no fundo do palco, quando muito) daquele show que não só aconchega o universo do disco, como muitas vezes o transcende, transformando disco e show em objetos separados, mas… maiores? Há diferença… musical nos dois contextos??
A questão surge porque, sim, é possível viver grandes “experiências” (argh… dá até coceira usar esse adjetivo desgastado nesse cenário de música ao vivo, principalmente festivais) assistindo a um show no charmoso FFFront sem nenhuma grande produção extra banda tanto quanto é possível viver grandes “experiências” (ainda que distante dos artistas) assistindo a shows em estádios com produção de cair o queixo ou som e telões de qualidade absurda, ainda que a música, logo ela, algumas vezes possa ficar em segundo plano. Tudo é música (quase sempre, pois tem algumas coisas que são Coldplay… brincadeirinha) e, no fim, a música sempre vence (aliás, palmas a todo mundo que suportou o descaso e o despreparo da produção e viu Caetano e Macalé ao vivo tocando “Transa” em mais uma vitória sofrida da música sobre tudo mais)…
Tudo é música, tudo é “experiência” (argh), mas é absolutamente inebriante assistir a um show absolutamente perfeito e pensado como espetáculo, como grande arte, cujas músicas estão ali não apenas como pretexto de amplificação ao vivo de um registro feito em estúdio, mas também como veículo de outras artes, outras viagens, outras pulsações. As apresentações que Luiza Lian fez no sábado e domingo no teatro do Sesc Pompeia, um local encantador ainda que por si só desafiante já que a artista precisa lidar com uma plateia de cada lado, lançando seu novo disco, “7 Estrelas | quem arrancou o céu?” (destaque do Brasil para a Aliança Faro em julho), se encaixam a perfeição nessa descrição, e vão além, porque expõe uma artista que não pensou as canções que compõe um disco apenas como canções que compõe um disco, mas sim como parte de um todo estético, visual e teatral que é maravilhoso nos mínimos detalhes. Ou, como definiu a jornalista Roberta Martinelli em seu Instagram, “um show sonho”.
Com toda a extensão do palco tomada por uma espécie de areia preta (para se aprofundar em Luiza seria interessante que você também visitasse Clara Nunes), duas esteiras de caminhada em lados invertidos do espaço assim como duas faixas de pano transparentes (que receberiam projeções durante toda a noite) na mesma posição, mais um kit de bateria, eletrônicos e escaleta sob o comando do parceiro e produtor Charles Tixier, tudo isso bombardeado por luzes e lasers, Luiza Lian entra em cena, após uma introdução musical performática de Charles, acompanhada das dançarinas Ana Noronha e Bruna Maria para mostrar uma das peças chave do novo disco e show, “A Minha Música É”, cuja letra avisa: “A minha música é uma paisagem / Pra você entrar e fazer sua viagem”. Não só: a música que abre o disco também reflete o período trágico de sua composição: “O coro das perfeitas / O grito dos aflitos / Todo mundo fake todo mundo mito / Todo mundo morto / Todo mundo morto”… São os primeiros minutos de seu novo show, e Luiza Lian já entrega uma carta de intenções.
O clima se segue sombrio na segunda música da noite, “Tecnicolor”, com Luiza observando que “Lá fora o mundo está morrendo / quem arrancou o céu?”, e segue com “Forca”, “uma história sobre trapaça, fraude, mentiras”. Lá pelas tantas, Luiza crava: “Você sustenta essas ideias podres / esses poderes hilários / esses poderes / Você sustenta esse poder / Falso poder”. Não há refresco: “Quem com cobra se cria / envenenado morre”, canta Luiza na potente “Cobras na Sua Mesa”, que fecha o primeiro bloco do disco novo. Até aqui – e se seguirá por toda a noite –, o trabalho de iluminação cênica (Amanda Amaral), desenho de lasers (Diogo Terra) e video projeções (Bianca Turner) é de cair o queixo, estudado, milimétrico, detalhista, daquelas coisas que não acontecem à toa, mas sim por muito estudo, conversa, busca e encontro. Não é só bonito visualmente, mas profundo tematicamente, com a iluminação pontuando frases, ideias, criando cenários, demarcando territórios, desenhando símbolos.
A canção “Oyá”, do álbum “Oyá Tempo” (2017), surge rearranjada para a nova fase de Luiza Lian, o que também acontecerá com as faixas do premiado “Azul Moderno”, de 2018 (como “Mil Mulheres”, “Sou Yaba”, “Iarinhas” e a faixa título, cantada em coro pelos presentes). Na hora de voltar para o novo disco, Luiza pede a palavra: “É muito emocionante estar aqui, agora. Foi muito tempo que a gente ficou construindo esse disco… desde o começo de 2019, pensando em lançar em 2020. Até pensamos em chamá-lo de ‘2020’, porque é um número tão incrível e… 2020 (risos gerais). Esse disco atravessou esse momento (de pandemia) com a gente, e não é à toa que ele fala sobre isso porque existe uma tragédia, um sufocamento que estava presente desde antes, e que piorou ainda mais com o governo Bolsonaro. E não que todo mal tenha passado, mas que bom que não estamos mais vivendo aquela situação. Sobretudo, esse é um disco que fala muito sobre presença, e sobre como temos nos desconectado da gente, das nossas complexidades, de como começamos a olhar de uma forma tão chapada pra realidade e pros outros, e o quanto isso é um alimento para esse extremismo, esse fascismo. É um disco muito mais de perguntas do que respostas. É uma vontade de olhar com atenção para tudo isso… e encarar”.
De volta à música com dois dos potenciais candidatos a hit do novo álbum, primeiro com a festejada “Desabriga” (uma das mais aplaudidas da noite) e depois com a irresistível “Homenagem”, um dos refrãos mais fodas de 2023. “Eu Estou Aqui” e “7 Estrelas” fecham a noite de maneira irrepreensível. Luiza sai de cena, mas volta rapidamente e brincando: “Prepararam um cartão lindo, e eu quis usar nesse momento especial… meio como a Xuxa” (risos). E então ela enfileira a equipe responsável pelo show, um quem é quem da música e da arte paulistana (ficha completa aqui), justificando não apenas a qualidade impecável do show “7 Estrelas | quem arrancou o céu?”, mas também reiterando a certeza de que algumas coisas não acontecem por acaso, muito pelo contrário, são resultado de muita busca, trabalho e união de especialistas em diversas áreas em torno de algo comum, no caso, a grande arte de um show de música, o grande show de música no país em 2023.
A noite, felizmente, ainda não acabou. “Deságua”, mais uma nova, abre o bis de forma festeira deixando todo mundo de alma lavada. E, falando em festa, Luiza Lian resgata uma canção que foi escrita para o novo disco, mas saiu como single em parceria com a banda Bixiga 70 ainda em 2019: “Alumiô” faz todo mundo levantar das cadeiras do teatro para dançar e cantar uma letra que fala sobre uma “lágrima prismática” que “encheu o rio / O meu coração se encheu de amor / Cai na terra pra nascer a flor / Pra nascer a flor”, uma maneira poética e bonita de retratar, em um show de música, um dos períodos mais dolorosos da história do país (e, muito provavelmente, de cada um de nós como cidadão brasileiro), e sair com a noção de que passamos por tudo isso, e estamos vivos, precisando olhar pra frente, porque de nossas lágrimas podem nascer flores, um fechamento mágico e sonhador para uma noite absolutamente inesquecível.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: instagram.com/fernandoyokota/