texto de Davi Caro
A história da música popular é repleta de discos de estreia que tomam igualmente variados significados ao longo das carreiras de seus artistas. Às vezes, um disco se torna menos relevante ou impactante à longo prazo quando uma banda ou compositor alça voos mais altos após seu lançamento (exemplos como o do Radiohead podem vir à mente), enquanto outros casos mostram grupos com debuts bem sucedidos ao ponto de lançarem uma sombra inescapável sobre outros trabalhos de um mesmo catálogo (alô, Weezer). São mais raras as situações em que um time de músicos consegue encontrar rumos bem sucedidos mesmo tendo uma relação saudável e segura em relação ao repertório inicial de sua trajetória. E o caso da Fresno é um dos melhores representativos desta última categoria no Brasil.
Formada em 2001, a banda capitaneada pelo multi-talentoso Lucas Silveira (vocais, guitarras e teclados) construiu para si um legado que destoa, no melhor sentido, daqueles de seus contemporâneos, oriundos da cena “emo” alardeada no país na metade da década de 2000. De lá para cá, os gaúchos se tornaram presença carimbada em festivais ao redor do país e reverenciados por uma base de fãs que se renova a cada ano que passa. Seu último álbum, “Vou Ter Que Me Virar” (2021), foi aclamado por público e crítica, mostrando algumas das melhores canções compostas pelo vocalista – que há tempos também assina a produção dos discos – e vêm rendendo inúmeros shows lotados com fãs entusiasmados tanto pelo material mais recente quanto por músicas que remetem à outras décadas. O que nos leva a falar de “Quarto dos Livros”, primeiro disco do grupo, que completa 20 anos neste agosto.
Aqueles introduzidos à música da Fresno por meio de suas aparições na saudosa MTV podem não se lembrar de sua primeira formação que, além de Silveira e do longevo parceiro Gustavo “Vavo” Mantovani (guitarra), ainda contava com o baterista Pedro Cupertino (mais conhecido como Cuper) e o baixista Bruno “Lezo” Teixeira. Após um período como quinteto, com o vocalista Leandro Pereira (que abandonou o grupo durante as gravações da demo “O Acaso do Erro”), Lucas finalmente assumiria os vocais, e o registro das faixas do álbum de estreia se iniciaram já em 2003. Gravado entre janeiro e abril de 2003 por Alemão no estúdio Licks e por Fred Malibu e Fresno (baixo, guitarras, vozes, teclas e cordas) no Estúdio Boi, e produzido de forma independente, o primeiro trabalho acabaria sendo lançado pelo selo Sweet Salt.
É fascinante ouvir “Quarto dos Livros” em 2023 por uma série de motivos. Primeiro, porque o senso melódico e o peso das gravações já demonstravam um tipo de dinâmica musical da qual a Fresno, ainda que experimentando e trazendo diferentes elementos para seu som, nunca conseguiu se desvencilhar totalmente; as influências de bandas contemporâneas, como os sempre citados Dashboard Confessional, The Get Up Kids e Brand New se fazem presentes, ainda que o desempenho dos músicos favoreça uma linguagem própria, e não meras cópias. Em segundo lugar, porque é intrigante pensar no papel desempenhado pelo disco na cena que o originou em comparação com seus contemporâneos, e o nível técnico e de apuro sonoro sobre a gravação e a mixagem não fazem feio atualmente, da mesma maneira que devem ter soado excepcionais à sua época.
Qualquer preconceito com o som do grupo ou com o nicho no qual foram encaixados é facilmente desarmado logo na primeira faixa, “Teu Semblante”. Ainda que a voz de Lucas soe diferente e ainda distante de seus trejeitos e técnica atual, o vocalista soa confiante e se entrega completamente desde o primeiro segundo, com linhas de guitarra que poderiam figurar em discos de bandas como American Football. O mesmo pode ser dito a respeito das linhas de bateria, que mudam substancialmente nas duas músicas seguintes: “Desde Já” é veloz, com partes coesas de baixo que remontam às raízes hardcore do gênero; já “Carta” inicia com dedilhados e ritmos mais cadenciados, embalando letras reflexivas daquelas que marcariam a carreira da Fresno, e que mostrariam mais maturidade a partir de “Ciano” (2005). A rapidez punk e os backing vocals de “Carpe Diem” chocam quando escutados lado a lado com os arranjos mais intrincados de “O Gelo”, uma das mais complexas composições do disco.
A reta final do álbum inicia com os questionamentos da melancólica “Se Algum Dia Eu Não Acordar”, na qual guitarras cortantes caminham de mãos dadas com alguns dos mais pueris versos no disco (“Será que algum dia eu vou saber? / Mas eu também me arrependeria / Pois pra ti eu nunca me declarei”). O ritmo volta a acelerar com as palhetadas de “Mais um Soldado”, onde a tristeza adolescente dá lugar à resignação revoltada, numa letra que caminha na linha tênue entre a amargura e a eterna esperança de um soldado “marchando cansado / Para dormir sozinho até te achar”. O ápice chega no momento mais memorável do disco: iniciando com batidas abafadas e vocais sussurrados, “Stonehenge” seria o grande marco do álbum, em muito responsável pela atenção gerada em torno do lançamento e da banda. Mais lenta, e com um trabalho exemplar de Cuper na bateria – alternando entre batidas mecânicas e momentos mais esparsos – junto ao sólido baixo de Lezo, a composição cresce em sua metade final, com as guitarras saltando ao centro da melodia e um refrão que entra facilmente em qualquer lista dos melhores já compostos por Silveira. “1 Eu Sem 1 Você” inicia, com energia punk e riffs abafados, a dobradinha final do disco, que tem em sua última faixa, “Sono Profundo”, seu momento mais diferente: fazendo uso de violões e amparada no uso de glockenspiel, a faixa também merece destaque pela aparição de teclados, que se tornariam marca registrada da sonoridade explorada pela Fresno no futuro não tão distante.
Bem recebido pelo público ainda menor, mais já fiel da banda, “Quarto dos Livros” pode ser encarado como uma polaroid de uma banda que podia não saber ainda aonde chegar, mas que já tinha ferramentas suficientes para saber que teria uma longa vida. “O Rio, A Cidade, A Árvore”, disco seguinte do quarteto lançado em 2004, seria outro passo fundamental em direção ao som que tornaria a Fresno famosa a nível nacional, especialmente a partir de “Redenção” (2008). Assim, a primeira trilogia de discos lançada pelo grupo (“Quarto dos Livros”, “O Rio, A Cidade, A Árvore” e “Ciano”) pode ser encarada como um aquecimento em direção à maturidade demonstrada em hits como “Polo”, “Uma Música” e “Desde Quando Você se Foi”, canções que habitam um universo não tão distante daquele no qual as canções de seus três primeiros discos existem. “Stonehenge” viria a ser regravada para “Ciano”, e aparece também em versões ao vivo registradas em “O Outro Lado da Porta” (2009) e em “Ciano ao Vivo” (2016).
As canções de “Quarto dos Livros” são raramente revisitadas pelo grupo em suas turnês, que priorizam sucessos e trabalhos mais recentes. Porém, é notável perceber o respeito e o carinho que a própria banda tem para com seu primeiro trabalho: Lucas Silveira recentemente fez publicações que indicam uma comemoração especial para celebrar as duas décadas do lançamento do álbum, e despertando as esperanças dos fãs, sedentos para uma turnê dedicada às músicas gravadas 20 anos atrás É incerto se a ocasião poderia contar com participações especiais juntamente à formação atual do grupo (que atualmente é um trio, com Lucas, Vavo e o baterista Thiago Guerra – Lezo e Cuper deixaram o grupo em 2006 e 2008, respectivamente); seja como for, é fato que muito aconteceu ao grupo ao longo de todo este tempo, e nada é mais essencial para seguir em frente do que saber (e respeitar) onde tudo começou.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo