texto por Bruno Capelas
fotos por Fernando Yokota
Os tempos não têm sido fáceis para os fãs de vozes marcantes no Brasil – afinal de contas, só nos últimos dois anos se foram Gal Costa, Rita Lee e Elza Soares, três perdas duras que abalaram os corações de milhões de melômanos. Talvez por conta disso, cada reencontro com um artista veterano se tornou, nos últimos meses, também um tributo a quem se foi e uma celebração da sobrevivência de quem está aqui. É uma energia que esteve no ar na noite do último sábado, 5 de agosto, quando Baby do Brasil subiu ao palco do Teatro Bradesco, na zona oeste da capital paulista.
Foi o primeiro show na capital paulista da turnê Baby do Brasil In Concert, que estreou em Natal há algumas semanas e deve rodar o Brasil nos próximos meses – enquanto a cantora prepara seu primeiro disco de inéditas ao lado do produtor Dudu Marote (de discos clássicos como “Calango”, “Televisão de Cachorro”, “Isopor” e “O Samba Poconé”). Mais do que uma celebração, porém, o espetáculo de mais de duas horas também serviu como um símbolo da carreira de Baby, no que isso tem de positivo e de controverso.
Até porque são muitas as faces da mulher nascida Bernadete Dinorah de Carvalho Cidade. Todas elas estiveram no palco em São Paulo, “misturadas na argamassa colorida do senhor”: a Baby Consuelo dos Novos Baianos; a Baby da dupla com o ex-marido Pepeu Gomes; a cantora pop que, de tão amada pelo Brasil, adotou o nome de seu país; a Baby dos seis filhos de nomes exóticos; e, claro, a Baby que se converteu evangélica e se tornou uma “popstora”, se afastando dos palcos “seculares” por mais de uma década.
O incauto espectador que entrasse desavisado no Teatro Bradesco logo no começo do show, porém, iria achar que recebeu o ingresso errado. Antes da entrada de Baby no palco, sua banda atacou em uma longa introdução prog/hard rock, que passeou por Bach, Beethoven e “Stars”, do Simply Red (!), para receber a diva baiana com cerca de 20 minutos de atraso protocolar. A partir daí, Baby adentrou seu repertório pela veia compositora, explorando canções de sua carreira solo e da de Pepeu, como “Cósmica”, “Um Raio Laser” e “Telúrica”.
O tom rrrrock do sexteto, aliás, foi uma das tônicas do concerto: não raro, Baby abria espaço para que os músicos se embrenhassem em duelos de guitarra, solos de baixo e improvisos de bateria gigantes, estendendo a duração de canções pop como a já citada “Cósmica”, “Planeta Vênus” ou “Fazendo Música, Jogando Bola” para lá dos cinco ou seis minutos. Isso quando não convidava os acompanhantes para solarem Vivaldi, Chopin ou mais Bach – em uma evidente demonstração de virtuosismo, mas não necessariamente de qualidade.
Em outros momentos, foi a própria Baby que se estendeu não só nos improvisos vocais – “eu tenho nota pra caramba pra cantar”, brincou ela a certo momento –, mas também nas homenagens. Foram várias: para Rita Lee (“Mania de Você”), para Elza Soares (“Malandro”, de Jorge Aragão), para Moraes e Galvão (“A Menina Dança”, em versão acelerada e ainda assim deliciosa) e para Gal Costa (“Dê Um Rolê”, definida por Baby como “a música gospel dos Novos Baianos, porque ela honra e glorifica ao Senhor”).
Também houve homenagens a quem partiu fora do combinado há um tempo maior – caso de Ademilde Fonseca, a rainha do Choro, lembrada em “Brasileirinho”, ou de João Gilberto. “Eu sou a pessoa que dormiu muitas vezes no pé de João Gilberto cantando ‘O Pato’”, lembrou Baby, antes de chamar ao palco o jovem Will Santt. De cabelos encaracolados e muito acanhado, o rapaz acompanhou Baby em dois clássicos do repertório de João, “Desafinado” e “Isaura”. Foi o suficiente para que ele derretesse corações já meio amanteigados na noite paulistana, ao mesmo tempo em que deixou lá certo gosto rançoso de barzinho e violão na boca.
Will, porém, não foi o único convidado: após deixar os holofotes, ele foi substituído em cena por um trio de percussionistas lideradas por Bel Besse, entrando em um longo medley que fez um city tour pela música brasileira. Respire fundo: “Aquarela do Brasil”, “Samba da Minha Terra”, “Apanhei-te Cavaquinho”, “Baião”, “Asa Branca”, “Sebastiana”, “Pombo Correio” e… se precisasse de mais alguma coisa, ainda teve “Is This Love”, de Bob Marley, ali no meio. Quer outro medley meio inusitado? Então que tal juntar “Conceição”, clássico máximo do repertório de Cauby Peixoto, com “Summertime”, dos irmãos Gershwin… (e sim, você também pensou em Janis Joplin).
Tanto improviso, tanta participação, tanta homenagem, porém, acabou frustrando as expectativas de quem foi ao Teatro Bradesco ver o principal: Baby do Brasil. Não que a cantora não tenha se esmerado em dar seu melhor: com uma voz bem preservada, na medida do possível para os seus 70 anos, ela não deixou de oferecer aos presentes o melhor de seus registros, além de muito humor. Mesmo quando falava de religião ou trocava as letras (“eu fui à Igreja pedir para Jesus me abençoar” é um novo verso de “Brasil Pandeiro”, de Assis Valente, para não citar o já clássico “Jesus Forever tatuado no braço” de “Menino do Rio”), era difícil não se divertir e rir com ela.
No entanto, em alguns momentos a beleza pop do repertório de Baby era encoberta pela aspereza hard rock de sua banda. Em outros, foi visível a preocupação de acelerar as músicas antes do fim do show – não foram poucas as vezes que Baby acenou ao baterista para adiantar o andamento das canções, a fim de tentar ganhar tempo. Tempo esse, por sua vez, que acabou sendo gasto em algum discurso ou solo desnecessário logo depois. Fato é que quem foi ao Teatro Bradesco acabou indo para casa sem ouvir alguns de seus principais sucessos – incluindo “Emília, A Boneca Gente”, “Todo Dia Era Dia de Índio” e a indefectível “Sem Pecado e Sem Juízo”.
Não que jogar alguns hits de canto seja uma má ideia. Mas em uma turnê que busca revisitar as cinco décadas de carreira de Baby no palco, deixar esses sucessos de lado parece imprudente, ainda mais quando se vê o que entrou no lugar. É uma marca, porém, que mostra a dor e a delícia de assistir Baby do Brasil: uma artista incrível, cativante e personalíssima, e talvez justamente por isso um bocado insegurável, talvez improduzível, certamente incopiável. Em um espetáculo que tantas vezes preza por respeitar a história da música brasileira, faltou entender que a própria cantora é a história viva, aqui conosco para cantar e contar sua vida, sem esgotar o tempo regulamentar. Felizmente, a menina ainda dança – e fechar os olhos pra isso seria um pecado, sem juízo.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/