Entrevista: “Através das histórias de pessoas negras vamos descobrir o verdadeiro Brasil”, diz Afonso Borges, criador do Fliaraxá

entrevista e cobertura por Gabriel Pinheiro

Entre os dias 5 e 9 de julho, a cidade mineira de Araxá se transformou na capital brasileira da literatura. A 11ª edição do Fliaraxá reuniu cerca de 200 autores e mais de 25 mil pessoas com um objetivo em comum: fruir e debater acerca da literatura e do mercado do livro no país.

Nesta edição, o evento homenageou a autora carioca Eliana Alves Cruz. Autora de obras como “Água de barrela”, “O crime do Cais do Valongo” e “Solitária”, Eliana venceu o Prêmio Jabuti de 2022 na categoria Contos, com o livro “A vestida”. Uma das mais proeminentes vozes da literatura brasileira contemporânea, a escritora tem uma obra que transita por gêneros como o romance, o conto e a literatura infantil, lidando com temas como a ancestralidade, o racismo e o feminino.

Já a poeta mineira Líria Porto, autora de obras como “Asa de passarinho”, “Olho nu” e “Garimpo”, finalista do prêmio Jabuti de Poesia em 2015, foi a homenageada local desta edição. Durante o Fliaraxá, seu novo livro, “Sem pecado não tem salvação”, foi um dos sucessos da edição.

Passaram pelos cinco dias programação autoras e autores como Cidinha da Silva, Lucrecia Zappi, Paulo Lins, Itamar Vieira Junior, Jeferson Tenório, Tom Farias, Sérgio Abranches, Carla Akotirene, Trudruá Dorico, Carla Madeira, Eugênio Bucci, Jamil Chade, e convidados internacionais como a escritora italiana Lisa Ginzburg e o multiartista angolano Kalaf Epalanga.

O olhar para a diversidade foi uma das marcas deste Fliaraxá, que foi palco de discursos marcantes, tanto no campo da literatura, quanto acerca da sociedade brasileira. Como a fala da escritora indígena Trudruá Dorico, pertencente ao povo Makuxi, em uma das mesas: “Não existe, no Brasil, uma política da identidade, uma educação objetiva que fale sobre identidades indígenas. Essas identidades, enquanto fomos colonizados, foram apagadas da história”.

Em conversa com a homenageada Eliana Alves Cruz (acima), Jeferson Tenório debateu acerca da discussão sobre o racismo dentro de seu projeto literário: “O racismo não é um tema pra mim, porque eu acho que ele não tem valor estético. Eu não acho que o machismo ou a homofobia têm valor estético. São outras questões que são da ordem do humano. Uma sociedade justa, sensata e ética poderia viver sem o racismo”.

Em outro momento marcante do Fliaraxá, o criador e curador do festival, Afonso Borges, discutiu a importância de leis de incentivo, como a Lei Rouanet: “Queria dizer, primeiramente, que tudo isso é feito pela Lei Rouanet, do Ministério da Cultura. Essa lei que foi tão amaldiçoada nesses últimos quatro anos e que precisa ser resgatada. Eu sou do tempo em que a gente pedia patrocínio sem a Lei Rouanet, e todo mundo achava que eu era louco. Eu continuei louco pelo caminho, mas foi através da Lei Rouanet que consegui realizar esses festivais literários, o “Sempre um Papo”, e todas as outras ações de incentivo ao hábito da leitura ao longo desses quase quarenta anos”.

O Fliaraxá chegou à sua 11ª edição se afirmando como espaço para o debate acerca do mercado literário e sobre a multiplicidades de Brasis – e de mundos – que o campo literário pode, e deve, representar. Conversamos com Afonso Borges durante o evento.

Toda a programação do 11º Fliaraxá está disponível no Youtube do Festival

11ª edição do Fliaraxá, um dos mais importantes eventos literários do país. Como você vê em retrospecto essa trajetória do Festival nesses 11 anos?
O mais importante no Fliaraxá pra mim, a questão número um, é comunidade. É um festival colado na comunidade, sempre. Através da educação, dos movimentos populares, por exemplo. Em segundo lugar: conteúdo e conceito. Esse é o grande segredo de um festival literário, e eu acredito que, na verdade, a gente pode até expandir para outros negócios da área de cultura. Ter um conceito bem estabelecido. Veja bem, nós estamos aí, todo mundo sabe quem é Mário de Andrade [Patrono da edição], todo mundo sabe que o nosso tema é “Educação, literatura e patrimônio”. Isso faz com que as pessoas entendam a sua proposta e é o mais difícil de acontecer num festival. Em retrospecto, eu acredito que o festival, desde o primeiro momento, quando homenageou em 2012 nomes como Zuenir Ventura, Luis Fernando Verissimo e Ziraldo, já veio trazendo a importância da leitura como catalisadora das outras artes ao seu redor. Sempre com esse objetivo: valorizar o livro, a leitura, a formação e a educação.

Quais os maiores desafios do trabalho curatorial dentro de um festival literário? Como dar conta da diversidade da literatura produzida no país ontem e hoje?
É um xadrez bem jogado, com suas tramas bem engendradas. Tem a ver com a organização das ideias. Se o seu conceito está bem resolvido, você sabe quem convidar, você sabe qual mesa fazer, você sabe, inclusive, quais mesas você não deve fazer, o que é importante também. Como associar a gastronomia, a música, o teatro e a dança ao redor do que você planejou.

Pensando ainda na diversidade, esse foi um dos pilares da programação deste ano, certo? A literatura produzida por autoras e autores negros e indígenas, por exemplo. O Sérgio Abranches falou sobre a “pluralidade étnica” na abertura do evento, algo que você reforçou em sua fala logo na sequência. O trabalho de curadoria, nesse sentido, é um gesto político, não?
Sem dúvida, é tudo político. Mais ainda quando você entende que o festival deve refletir, em primeiro lugar, os problemas do país. Senão fica uma coisa da ilha da fantasia. O maior problema brasileiro, de um país tão novo, tão recente, digamos assim, na história da civilização, é a questão racial e, em segundo lugar, a questão da desigualdade social. Elas se juntam às questões acerca das populações indígenas e da comunidade LGBTQIA+. Tudo isso se junta numa espécie de caldeirão, onde a gente constrói, através dos convidados – é aí que está o segredo, isso se reflete na escolha dos convidados – um festival absolutamente diverso, um festival que você, ao olhar os livros, os convidados e os temas presentes, entende que ele reflete o maior problema brasileiro, que, na minha opinião, hoje, é a questão do racismo. É um enfrentamento que o Brasil precisa fazer, está fazendo e se não fizer, como disse o Sérgio Abranches, não vai ter futuro, não tem futuro.

A realidade brasileira invade boa parte da literatura que a gente viu aqui. Se a gente for pensar no trabalho do Jeferson Tenório, os últimos romances da Eliana Alves Cruz e Lucrecia Zappi…
Tá vendo? Esse é o segredo. Se você faz um festival e não define um conceito, vira uma salada que ninguém compreende bem. Quando você olha pro corpo de convidados, você entende que o festival está tocando nesses assuntos. É por isso que fizemos a exposição “Muros invisíveis”, essa homenagem a 42 professores negros da cidade, para levantarmos a questão do racismo. Mas ela não está sozinha. Os alunos da cidade que participaram do concurso de redação vieram até a exposição para se inspirarem na escrita a partir do tema proposto, que é o que norteia o Fliaraxá como um todo, “Educação, literatura e patrimônio”. É fácil? Não. Mas é o grande desafio. Se não for pra isso, se não for pra transformar, pra que fazer? Não tem sentido.

São quase 40 anos trabalhando na promoção e no debate acerca da literatura, não é mesmo? A literatura ainda consegue te surpreender? Qual o último livro que te deixou em suspenso?
Mas é claro. Você me pergunta, o que há de novo? O que há de surpreendente? As histórias dos negros, as histórias dos indígenas. Histórias que finalmente saíram da invisibilidade no mercado editorial brasileiro. A narrativa da Eliana Alves Cruz no livro “O crime do cais do Valongo” é algo sensacional. Nós temos tanta coisa a descobrir com relação à essa história brasileira associada ao racismo e à escravidão, que eu me atrevo a dizer que a história branca que até agora nos foi contada não tem graça nenhuma. Agora é que nós vamos começar a descobrir quem é e onde está o verdadeiro Brasil e o verdadeiro de brasileiro. Através da história das pessoas negras, através da história dos indígenas e através da história das minorias. Essa é a verdadeira história que, agora, está sendo revelada e que nos interessa. O que me interessa agora é o que a Eliana Alves Cruz, o Jeferson Tenório, o Itamar Vieira Júnior, o Tom Farias, a Conceição Evaristo e tantos outros estão escrevendo. Essa é a nova história, que de nova não tem nada, mas que está sendo revelada. Finalmente.

– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel

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