entrevista por Alexandre Lopes
Três pessoas surgem no palco. Uma delas ostenta um vestido de renda e uma máscara de bode, que em seguida é removida do rosto para soprar um berrante, daqueles usados por boiadeiros para atrair o gado no campo. Uma bateria eletrônica é acionada, enquanto tem início uma espécie de ritmo de moda de viola caipira improvisada em guitarra e baixo. O guitarrista, uma figura alta de óculos, mullets e calça flare, empunha uma Giannini Supersonic dos anos 80 na altura do peito, alternando em seu instrumento ruídos nervosos com linhas tortas e andamentos calmos, enquanto provém vocais de apoio. O baixista se mantém mais reservado, de cabeça baixa usando um gorro, concentrado em tocar suas partes, mas também arrisca mudanças ocasionais para a guitarra principal. A tocadora do berrante segue operando a bateria eletrônica, revelando-se a voz protagonista ao entoar letras apaixonadas modernas (“nóis tamo bem distante mas mesmo assim mando figurinha do whatsapp só pra você”) e momentos de deboche (“acordei com cólica no hotel das puta”), intercalando danças entusiasmadas com expressões sofridas no rosto e uma das mãos no peito. A música soa como uma mistura improvável de Inezita Barroso com Velvet Underground e Odair José buscando ser um Beach House rústico. Mas esse cenário pitoresco cativa e empolga – e muito – em um show do Duo Chipa.
Formado em 2020 por Audria Lucas (vocalista) e Cleozinhu (guitarrista e vocalista), o Duo Chipa começou com a proposta de fazer uma banda de “rock caipira”, misturando a influência de cancioneiros das regiões sudeste e centro-oeste com estilos musicais da cultura latino-americana. A dupla começou a registrar suas composições em fita cassete, utilizando um gravador Tascam Porta 07 de quatro pistas e samples – uma técnica quase artesanal de combinar materiais analógicos e digitais. Essa maneira caseira de registrar suas composições é fruto da cultura gringa do “Do It Yourself”? Não somente. “Nós vemos a música caipira e seus intérpretes com uma atitude muito punk, um estilo de vida muito ‘rockeiro’”, afirma o duo. E como uma sonoridade tradicionalíssima desse mundo matuto pode influenciar jovens tão inquietos? Segundo eles, existem muitas similaridades entre a música caipira e o punk: “tanto no jeito de tocar, com as levadas de mão direita na viola/violão, como no estilo autodidata de aprender a cantar e tocar”.
E justamente com essa mentalidade, o disco de estreia “Toada Audaciosa” (2020) mostrou uma faceta mais crua da dupla, contando histórias sobre causos contemporâneos com duas vozes, guitarras, violões, samples e drum machines tocadas à mão e um teclado Casio CTK. Por mais ríspido que fosse, o trabalho foi interessante o suficiente para chamar atenção e render um convite para uma apresentação online no Festival Volume Morto em 2020, junto de nomes mais conhecidos e com mais tempo de estrada como Lucinha Turnbull, Kassin, Sophia Chablau, entre outros.
Embalados por seus experimentos curiosos, o Duo Chipa soltou o EP “DURA” (2021) e o segundo álbum, “Causos de Matuta” (2022), adicionando à mistura trechos de influências díspares como The Shaggs, Conde Só Brega, Helena Meirelles, Ovelha, Titãs, El Kinto, Paulo Diniz, além de partes de órgão gravadas nos anos 80 em fita cassete pelo avô de Cleozinhu. O ano encerrou com algumas apresentações pós-pandêmicas em formato de banda completa, contando com o reforço de Rafael Omar na bateria e Lucas Monch no baixo. E a cultura do “faça você mesmo” era também reforçada no merch da dupla: camisetas e outras peças adquiridas em brechós estampadas por eles mesmos, além de fitas cassetes e adesivos.
Agora em 2023 o Duo Chipa volta com um novo EP, “Doses da Paixão”, cuja arte da capa é uma boa representação conceitual das faixas; uma pintura quase infantil de um coração anêmico de expressão vazia, com sangue escorrendo de um buraco no canto esquerdo da testa, dando o tom tragicômico de letras sobre saudades, desventuras amorosas e amores não correspondidos embebidos em doses alcoólicas. Masterizado por Guilherme Chiappetta, o lançamento traz a dupla com uma musicalidade polida, mergulhada no brega-romântico com uma roupagem atual e mais acessível.
“Epocler Baby”, lançada como música de trabalho (assista ao clipe mais abaixo), traz em seu arranjo uma fusão bem fiel do brega com o dreampop, agraciada por uma interpretação bebum de Audria Lucas a la Angela Ro Ro e backing vocals de doo wop. O single ganhou um clipe onde o balcão do bar vira um apoio emocional para uma personagem solitária com fígado de ferro. Tanto “Epocler Baby” quanto a jovem-guardiana “Linda Projeção” são composições do sul-mato-grossense Bo Loro, baterista da banda Os Alquimistas – amigo de longa data e também considerado “padrinho” da Duo Chipa.
“Romântica” é uma canção com versos e refrãos ressaltados por um arranjo de metais feito pelo trompetista Bruno Ras. Além da clara referência à música brega, a faixa traz guitarras que prestam tributo a nomes do indie como Pixies, Ween e Meat Puppets. O curto EP termina com “Figurinha do Zap”, um rock ‘n’ roll com vozes e harmonias inspiradas nas toadas caipiras, mas com levada rítmica que chega a lembrar “I’m Waiting For The Man” do já citado Velvet Underground.
Em papo por e-mail com o Scream & Yell, Audria e Cleo contam mais sobre o Duo Chipa, o EP “Doses da Paixão”, como o projeto pretende desmistificar o conservadorismo na música caipira e outros trabalhos relacionados (como o curioso Manobra Feroz, que promete uma fusão entre hip-hop e emo). Confira a entrevista na íntegra abaixo:
De onde vem o nome Duo Chipa? Por acaso é uma brincadeira com a Dualipa?
Não (risos). Vem de “Chipa Paraguaia” [um alimento similar a pães assados com sabor de queijo], que tem bastante na região centro-oeste e claramente no Paraguai. “Duo” vem da dupla: Audria Lucas e Cleo.
Como vocês se conheceram e começaram a banda?
Nos conhecemos em Campo Grande (MS) com o interesse em comum de pesquisar a música caipira e a música latina/paraguaia. Desde então, em 2020, começamos a compor e gravar nossas criações.
A proposta de vocês é misturar moda de viola caipira com sintetizador, bateria eletrônica, samples e guitarra numa pegada indie rock, algo que parece bem singular. Como vocês pensaram nisso? O que faz parte do caldeirão de influências?
Nós vemos a música caipira e seus intérpretes com uma atitude muito punk, um estilo de vida muito “rockeiro”. Tanto no jeito de tocar, com as levadas de mão direita na viola/violão, como no estilo autodidata de aprender a cantar e tocar. Se você pegar o exemplo da violeira Helena Meirelles: ela tem uma faixa chamada “Parteira de Si Própria”, ouça essa faixa e me diga se tem algo mais punk do que isso… Da mesma forma olhamos para duplas como Alvarenga e Ranchinho, Cascatinha e Inhana, Tião Carreiro e Pardinho, Milionário e José Rico ou Inezita Barroso. Nos EUA, é nítida a transição do folk e country para o que conhecemos como rock. Nossa pesquisa é entender uma possibilidade onde o rock nasce da música caipira. Coisa que artistas brasileiros já fizeram, ainda que de maneira tímida. Podemos citar Raul Seixas, Sá e Guarabyra (no contexto do Rock Rural com raízes nordestinas, um pouco diferente do nosso contexto centro-oestino), Matuto Moderno, Charme Chulo, Geraldo Rocca, a música “2001” dos Mutantes, entre outras…
Pela história toda do agronegócio e os últimos resultados das eleições (Jair Bolsonaro ganhou em 66 cidades das 79 do estado e obteve a preferência de 59,49% do eleitorado sul-mato-grossense) e o apoio todo a ele por parte do mainstream sertanejo, o Mato Grosso do Sul parece um estado mais conservador, algo bem distante do que é o experimentalismo do Duo Chipa. Como surgiu esse interesse de vocês pela cultura caipira? Faz parte da ideia desmistificar esse conservadorismo?
Com certeza. É justamente pela desmistificação da ideia de conservadorismo que optamos pelo nome “caipira” ao invés de “sertanejo”. Existe um contraste enorme entre o que a música caipira representa até a metade do século XX com o que o sertanejo representa hoje. [O pesquisador] Marcos Queiroz afirma que existiu “uma experiência marcadamente indígena e africana” no passado da ruralidade sertaneja. Além de que a música caipira sempre foi feita por trabalhadores rurais, diferente da imagem pública da música sertaneja que existe hoje, tomada por cantores(as) brancos(as) com narrativas embranquecidas, elitistas e conservadoras. É triste ver movimentos como o “Agronejo”, por exemplo, que representa a extrema direita e consequentemente um extremo elitismo. É onde o monopólio, a monocultura, os agrotóxicos, o nepotismo, a grilagem, estão acima da agricultura familiar, do livre direito à terra, dos povos indígenas, etc. Mas ao mesmo tempo você vê movimentos como o “Pocnejo” [vertente do sertanejo batizada com a expressão “poc”, gíria usada para se referir a gays], ou por exemplo o aumento na procura por aulas de viola, estudos sérios sobre a música de raiz, artistas surgindo com propostas inovadoras nesse campo de pesquisa… Então sempre há um equilíbrio de forças, pessoas que vêm potência na música tradicional para trabalhar novas ideias, explorar caminhos sonoros e criar outras narrativas.
É engraçado como vocês misturam uma música de raiz caipira com sintetizadores, mas ao mesmo tempo tem essa questão de gravação com fitas de forma caseira e independente, mesclando processos analógicos e digitais. Essa é uma opção estética ou somente de conveniência?
Em cada álbum a gente procurou trabalhar uma sonoridade diferente, tanto nos arranjos como no modo de produção. A mistura entre o processo analógico e digital foi uma experiência muito positiva. Isso ampliou a possibilidade de trabalhar com qualquer equipamento que tivéssemos em mão.
Quem ouve o primeiro disco, “Toada Audaciosa”, o EP “Dura”, o “Causos de Matuta” e agora o EP, percebe que vocês estão refinando mais o som e a qualidade das gravações. Isso é um reflexo da entrada do Rafael Omar na química do Duo? Como ele passou a tocar com vocês?
Acho que não (risos). Nós aprendemos a mixar e produzir fazendo esses discos, então eles fizeram parte de uma experimentação nossa, de descobrir possibilidades de captação, mixagem, etc. Mas atualmente nós vivemos juntos, Audria, Omar e Cleo, então a gente sempre conversa sobre produção e mostramos o que estamos fazendo no momento, isso com certeza impulsiona a qualidade das gravações. Ele [Omar] começou a tocar bateria com a gente em 2022, e na época o MONCHMONCH tocava baixo. Quando o Monch saiu, Omar passou para o baixo e voltamos a tocar com a drum machine ao vivo. A colaboração do Bruno Ras na música “Romântica”, por exemplo, também foi algo que nos impulsionou bastante. Tivemos que aprender como gravar e mixar um trompete. Além disso, chegamos a fazer dois ou três shows juntos, com ele tocando outras músicas.
Pelo que pesquisei, até o momento vocês tocaram em São Paulo e Ribeirão Pires (SP), além de Campo Grande (MS), que por sinal deu origem ao mini doc Chipa de Ouro. Esqueci de alguma localidade? Tem planos concretos ou convites para shows em outros estados?
Foi isso mesmo. Infelizmente ainda não nos organizamos para tocar nos interiores, mas é nossa maior intenção. Por enquanto a agenda está aberta. Temos convites para tocar na capital e interior do RJ, e novamente em Campo Grande (MS), mas nada fechado.
As faixas “Linda Projeção” e “Epocler Baby” são de autoria do Bo Loro, músico campo-grandense que toca bateria na banda Os Alquimistas. Vocês já tinham gravado uma faixa dele antes, “Tremenda Baixaria”, presente no primeiro disco. Como começou essa parceria entre vocês?
O Bo Loro é praticamente o padrinho da banda (risos). A Audria conhece ele desde os 15 anos. O Cleo conheceu os dois em 2019, e todos temos interesses em comum pela música caipira, brega, jovem guarda, entre outros. Nossa conversa de whatsapp é cheia de áudios com algumas composições e outras referências (risos).
Além de lançar os discos como Duo Chipa, no bandcamp vocês se definem como um “estúdio” e postam gravações de outros trabalhos, como o Manobra Feroz, o Maleta e os discos solo da Audria e cleozinhu. Gostaria que vocês falassem um pouco sobre esses projetos e como eles diferem do que vocês fazem como Duo Chipa.
A gente já quis ser um selo, já quis ser uma produtora, mas acho que um “estúdio” resume bem o nosso trabalho. “Estúdio Duo Chipa” é como um leque de pesquisa sonora mais ampla e a Duo Chipa é especificamente os trabalhos da banda. Em 2022 lançamos pelo Estúdio o álbum “Manobra Feroz Vol. 1”, reunindo três artistas solo: cleozinhu, omar e akaStefani (outro pseudônimo de Audria Lucas). Apesar de serem as mesmas pessoas da Duo Chipa, o estilo é bem diferente, já que neste caso as influências vêm do hip-hop e do emo. Assim, cada um de nós também busca sua sonoridade individual, numa espécie de carreira solo coletiva (risos). Ainda dentro do leque do Estúdio, a gente posta alguns discos de vinil de outras pessoas no nosso canal do YouTube. Raridades que encontramos em sebos e afins, coisas que ainda não foram disponibilizadas na internet e que são importantes para nossa pesquisa, fazem parte do nosso imaginário.
Por fim, quais os próximos planos do Duo Chipa?
Nós estamos com uma pesquisa muito intensa sobre a Viola de Cocho [instrumento musical comum nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, sendo uma viola feita em um tronco de árvore, esculpido da mesma maneira como se faz um cocho, usado para colocar alimentos para animais na zona rural] e o cururu [ritmo musical similar ao repente ou combate poético ao som de violas caipiras]. Estamos entrando numa pegada de punk caipira, com uma pesquisa profunda sobre a música tradicional mato-grossense. Até escrevemos um projeto de edital sobre isso. E o Manobra Feroz também vai lançar os volumes 2 e 3, talvez até o 4 esse ano!
– Alexandre Lopes (@ociocretino) é jornalista e assina o www.ociocretino.blogspot.com.br. A foto que abre o texto é de Julia Amorim / Divulgação
Que alívio ouvir a renovação da música da minha terra a partir de suas raízes e com um discurso de rejeição à cultura bovina. Longa vida ao Duo Chipa. Contem com este cantautor pantaneiro radicado em Curitiba.