texto por Marcelo Costa
Por quanto tempo se pode manter a excelência em algo? “Black Mirror”, série televisiva britânica criada por Charlie Brooker criada em 2011, ainda que com alguns leves escorregões aqui e ali, conseguiu se manter celebre por cinco temporadas, mas agora, infelizmente, dá sinais de cansaço: a sexta temporada, que estreou na Netflix em junho, compila não apenas os cinco episódios mais fracos de toda a série como abandona premissas caras ao seriado e, muitas vezes, soa desleixada em seu próprio acabamento, seja estendendo os episódios por mais tempo que deveria, seja finalizando a história com saídas banais típicas de crianças de sete anos de idade (lobisomem, sério????).
Para uma série que conseguiu transformar seu título em um interessante meme popular – “isso é muito black mirror” –, a sexta temporada abdica completamente da característica principal que marcou as temporadas anteriores (e o próprio meme), um certo incomodo em como estávamos colocando as nossas vidas “nas mãos” da tecnologia, resultando em momentos perturbadores e sombrios (e, ok, felizes, afinal “San Junipero”), para concluir de maneira tola que, mais do que a tecnologia, o perigo somos nós mesmos. Saí o futurismo, entra em cena o suspense: “Black Mirror” está aos poucos virando “Red Mirror”. Desde a última temporada de “Lost” que uma série não soa tão frustrante ao mergulhar em sua própria obviedade.
Há, ainda, outro elemento “novo” na sexta temporada de “Black Mirror”, o que faz pensar se Charlie Brooker anda assistindo a “Emily em Paris”, outro produto Netflix: o humor puro sem sarcasmo, algo que resulta em uma despudorada leveza, algo impensável em outros tempos sombrios. Lembra quando você ficava sem dormir após assistir a um episódio de “Black Mirror”? Isso ficou no passado. Agora você pode se dar ao luxo de dormir sorrindo pela felicidade com que alguns episódios (ao menos dois) encerram suas narrativas – sim, até final feliz existe aqui.
Tudo isso, porém, poderia ser facilmente aceito se os episódios de “Black Mirror – Season 6” fossem… bons, mas nenhum dos cinco novos episódios consegue arranhar o status dos piores episódios das cinco temporadas anteriores (a saber, “Playtest”, da 3ª temporada, e “Fifteen Million Merits”, da 1ª temporada), o que deixa explicito um certo descaso com a série. De certa forma, Brooker parece se autossabotar entregando ao público um material duvidoso que carece de unidade, detalhamento e acabamento, três itens indispensáveis nas temporadas anteriores da série – basta pensar em “Bandersnatch”, episódio solo de 2018, que contém tudo isso.
Abrindo a temporada, “Joan Is Awful” une uma boa premissa (a de que não prestamos atenção aos contratos que assinamos com operadoras e empresas) com um dos temas tecnológicos do momento, a “revolução” da inteligência artificial. O início promete com uma mulher de vida comum descobrindo que a Streamberry (uma empresa como a Netflix) está transmitindo uma série baseada em sua própria vida (em que ela é interpretada por uma Salma Hayek criada por IA) em tempo real que a apresenta como uma megera. Há um viés tecnológico que é deixado de lado por humor pastelão (ela poderia pensar em fazer coisas boas, mas prefere se entupir de hamburguer e laxante e ir a um casamento numa igreja) e final feliz num episódio simpático.
“Loch Henry” aponta o dedo para os fãs de “true crime”, um dos gêneros que mais crescem no momento seja em séries, seja em podcasts. No episódio, um jovem casal estudante de cinema visita a mãe do rapaz na cidade praticamente abandonada em que ele vivia na Escócia. Lá, a garota se familiariza com uma série de crimes que aconteceram na cidade, e, conforme investigam pretendendo fazer uma série, descobrem novos fatos sobre os assassinatos. É o episódio mais redondinho da temporada, ainda que sem nenhum viés diretamente tecnológico e um final óbvio que, como os outros vão reforçar, somos brinquedos de nossas próprias escolhas.
O terceiro episódio da temporada, “Beyond the Sea”, é o mais pesado, estrelado (Aaron Paul, Josh Hartnett e Kate Mara) e com viés tecnológico entre os cinco. E um dos mais decepcionantes. Conta a história de dois astronautas que estão no espaço, mas que podem transferir sua consciência para réplicas perfeitas na Terra – por que não o inverso, com as réplicas na nave e as pessoas reais na Terra? Porque isso impossibilitaria a trama gratuita e maquiavélica, que envolve o assassinato de uma família nos moldes da trupe de Charles Manson, desesperança, romance e vingança. A cena final – de um episódio terrivelmente óbvio – é frustrante.
No penúltimo episódio da temporada, “Mazey Day”, uma fotógrafa paparazzi entra em crise ao descobrir que um dos caras que ela flagrou se matou depois que sua vida virou um inferno após as fotos serem publicadas. Porém, falta de dinheiro, oficina do diabo, não é mesmo? E lá está nossa amiga atrás de uma atriz de Hollywood que abandonou as filmagens por motivos escusos e que, desaparecida, tem um prêmio milionário por uma foto (o preço aumenta se ela for clicada usando drogas). É o episódio mais “fantasioso” de toda a série, mas não de um jeito bom, e, novamente, a cena final é terrivelmente piegas e frustrante.
Para encerrar a temporada, “Demon 79”, um episódio (demoniaco da variante “Red Mirror” e) de alívio cômico: uma jovem indiana vivendo em uma Inglaterra cada vez mais tendendo a extrema-direita se vê com uma tarefa inglória: ao manchar com sangue uma peça sagrada, ela invoca um demônio que, travestido de um integrante da banda de disco music Boney M. (que existiu e vendeu aproximadamente 80 milhões de cópias de discos mundialmente) assassinar três pessoas em três dias para que o mundo não acabe. A química entre os atores Anjana Vasan e Paapa Essiedu evita o tédio de um episódio que nasce de forma besta e termina de forma besta.
Há leves rompantes de sagacidade entre os cinco episódios de “Black Mirror – Season 6”, mas nada que mereça a posteridade – a turma do “Black Mirror Multi Verse” deve estar tendo um trabalho extra para decifrar a dezena de eastereggs e tentar encaixar as peças aparentemente soltas desse possível quebra cabeça. Se a quinta temporada, com apenas três episódios, já não tinha sido lá grandes coisas, a sexta temporada ameaça seriamente o futuro da série, porque além de falta de inspiração sinaliza descaso tanto quanto tende mais a Red Mirror do que a Black Mirror. Um destino cruel para uma das séries mais bacanas do novo século.
RANKING DE TODOS OS EPISÓDIOS, POR MARCELO COSTA
01) The National Anthem S01E1
02) San Junipero S03E4
03) The Entire History of You S01E3
04) Be Right Back S02E1
05) Hated in the Nation S03E6
06) Shut Up and Dance S03E3
07) White Bear S02E2
08) White Christmas S02E4
09) Bandersnatch S05E0
10) Men Against Fire S3E5
11) Crocodile – S04E03
12) Arkangel – S04E02)
13) Black Museum – S04E06
14) Hang the DJ – S04E04)
15) Nosedive – S03E01
16) Striking Vipers S05E01
17) USS Callister – S04E01
18) Metalhead” – S04E05
19) The Waldo Moment S02E03
20) Fifteen Million Merits S01E02
21) Playtest S03E02
22) Rachel, Jack and Ashley Too S5E03
23) Smithereens S5E02
24) Joan Is Awful S06E01
25) Loch Henry S06E02
26) Demon 79 S06E05
27) Beyond the Sea S06E03
28) Mazey Day S06E04
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
temporada HORROROSA. Uma ofensa ao que já foi Black Mirror