texto por Renan Guerra
Luís Capucho é um cantor, compositor, escritor e pintor nascido no Espírito Santo, mas radicado na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro. Sua obra artística é entrelaçada com a sua história pessoal: nos anos 90, Capucho estava se lançando no universo da músicas, tanto que sua primeira gravação aparece num disco coletivo de 1996 chamado “O Ovo”, porém é nesse mesmo ano que algo fatídico modifica sua vida e, por conseguinte, sua obra artística. Capucho entra em coma por causa de uma neurotoxoplasmose e, nesse mesmo momento, se descobre HIV positivo.
A doença deixaria sequelas físicas e motoras no artista, um dos principais pontos está na sua fala, que se torna mais lenta e difícil. Nos anos posteriores ao coma, Capucho seria gravado por diferentes artistas como Cássia Eller, Daúde e Pedro Luís e a Parede. Aos poucos, ele conseguiria retornar seu trabalho artístico; em 1999 publica “Cinema Orly”, seu primeiro livro, e em 2003 lança seu primeiro disco, “Lua Singela”. De lá pra cá vieram outros livros e discos e Capucho segue com uma produção artística prolífica entre os textos, as canções e as pinturas.
Capucho é o personagem central de “Peixe Abissal” (2022), novo filme de Rafael Saar. Porém não espere uma narrativa linear com informações biográficas como no parágrafo anterior, pois o documentário de Saar segue um fluxo bastante poético e experimental que tem como base os textos de auto ficção de Capucho. Saar já foi premiado no In-Edit Brasil de 2015 com seu filme “Yorimatã”, excelente documentário sobre a dupla Luhli e Lucina. Dessa vez, o diretor se mostra ainda mais maduro em um filme sinuoso e complexo, que poderia ter um resultado final hermético, o que não é o caso.
“Peixe Abissal” é um interessante experimento sobre a linguagem no cinema: o que é real? O que é reencenação? O que é ficção? Isso pouco importa no final das contas, pois o que conta no todo é a forma como o diretor e o seu personagem nos levam nessa narrativa. Com base nos textos de Capucho, o filme é construído com pequenas cenas cotidianas da vida do artista em Niterói: sua rotina de escrever, nadar e ir em cinemas pornográficos; bem como seus encontros, sua relação com seu namorado e reencenações das passagens de sua vida ao lado da mãe – que aparece em imagens de arquivo pessoal e que também é interpretada em diferentes cenas por Teuda Bara. Esse cotidiano é o motor para que se passeie por diferentes fases da vida de Luís Capucho, indo de sua relação com a produção artística, sua vivência com HIV e com as sequelas decorrentes da neurotoxoplasmose e seu olhar sobre si próprio enquanto homem gay que está envelhecendo.
Com uma produção técnica cuidadosa, “Peixe Abissal” se constrói a partir de uma fotografia arrebatadora e uma produção de som meticulosa, que consegue nos fazer mergulhar nesse universo de peixes abissais e profundos. A água, aliás, é um ponto central na vida de Capucho e aparece em diferentes momentos do filme, enquanto mar, rios e piscinas ou mesmo como metáfora para muitas passagens de sua vida. Falando em metáforas, são elas que ajudam a construir a narrativa do filme nos permitindo adentrar na mente do artista, com todas as suas dúvidas e desejos, questões advindas de sua sexualidade, de sua relação com a mãe e de sua condição de saúde. É interessante como o filme insere os fatos da vida dele de forma natural dentro de uma narrativa poética e que parece ir se formatando de forma própria – uma qualidade louvável do roteiro do filme.
E há diferentes escolhas que provam que a intenção aqui era mais mostrar a profundidade da obra dele, sem necessariamente formatar um apanhado biográfico. Um exemplo disso é que a gravação da música “Maluca” feita por Cássia Eller aparece apenas como trilha sonora, sem um destaque especial – a canção foi gravada por Cássia no excelente “Com você… Meu Mundo Ficaria Completo” (1999), além disso é possível encontrar algumas entrevistas em que a artista fala da importância da obra de Capucho para ela. Outro exemplo muito potente é a participação de Ney Matogrosso no filme; o músico já havia trabalhado com o diretor Rafael Saar nos ótimos curtas “Depois de tudo” (2008) e “Homem-ave” (2010), mas aqui em “Peixe Abissal”, Ney surge como personagem que colabora com a narrativa poética do filme, como uma voz-guia para essa voz interna de Capucho.
A vida de Luís Capucho poderia render um filme desses bem melodramáticos passando por seu coma, pelo HIV e com entrevistas de artistas chancelando a importância de sua obra, dizendo o quanto ele merecia ser mais reconhecido. De todo modo, Rafael Saar vai por outros caminhos e prefere fazer um filme muito mais sensorial que mostra a atualidade e a importância da obra de Capucho por si mesmo, com todas as suas nuances sexuais, deixando bem claro toda a sua potência narrativa homossexual. Exemplo disso é a beleza pungente de uma cena que homenageia a clássica sequência da fumaça de cigarro em “Un chant d’amour” (Jean Genet, 1950), porém agora tendo como cenário não a prisão, mas sim um banheiro público de Niterói.
Com tudo isso, “Peixe Abissal” se torna um filme poderoso que nos faz mergulhar nas criações de Luís Capucho com toda a intensidade que ele merece. É um filme para se (re)descobrir a obra de Capucho e também para demarcar de vez a sua importante para uma arte queer e marginal neste país. Não percam!
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.