entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
“A música é o veículo de excelência para a minha expressão por palavras. É no texto que eu gosto de colocar tudo o que eu tenho a dizer e procuro interligá-lo com a música”, diz-me Vanessa Borges num começo de conversa numa esplanada do Jardim do Príncipe Real, em Lisboa, enquanto tomamos um café. De seguida, recordamos as principais etapas do seu percurso que a levaram a assumir a identidade artística de Hadessa e, mais recentemente, a lançar o disco “Fortuna” (2023).
Vanessa começou a aprender guitarra aos nove anos, escreveu as suas primeiras canções com 15 e cantou em grupos de música tradicional, devido á sua enorme curiosidade pelas sonoridades populares portuguesas e pela world music, nomeadamente a música celta e dos Balcãs. Em 2004, formou com Alina Sousa o duo lisboeta Chão da Feira, um projeto que mistura as raízes musicais portuguesas com a música do mundo e editaria o EP “Das Tripas Coração” (2015) de forma independente. Sobre o grupo, Vanessa considera que “ainda tem muitos objetivos para alcançar no futuro”.
Para além de contar no seu currículo com um curso de música e literatura portuguesa na Universidade de Budapeste (Hungria), onde viria a fazer o mestrado, a artista participou entre Outubro e Novembro de 2021 num curso online, “Processo Criativo e Método de Trabalho”, ministrado pela rapper Capicua. Durante a formação, Vanessa foi desafiada a elaborar um projeto criativo e propôs-se a fazer o disco “Fortuna”, que seria o passo seguinte na sua carreira. “Além do desenvolvimento do conceito do álbum e dos temas principais, o curso ajudou-me imenso a ter uma melhor orientação relativamente à escrita e à produção musical”, conta.
A identidade artística com que iria encabeçar o trabalho, Hadessa, de origem bíblica (representa uma princesa persa, de origem judia, que contra todas as regras estabelecidas usou a sua inteligência assumindo a sua ascendência para pôs termo à perseguição do seu povo), motiva uma apreciação curiosa da parte da artista: “A Hadessa é aquela parte de mim que na descoberta da minha identidade esteve mais contida, mas talvez seja a pessoa verdadeira que eu gostaria de ser e por vezes não é possível por causa das máscaras que colocamos no dia-a-dia”.
O álbum conceitual “Fortuna”, ligado a uma ideia de sorte, destino e livre arbítrio percorre diversos estilos musicais como o pop, a música de intervenção portuguesa, o jazz, o rock, o hip-hop e o fado. Dentro das várias músicas do disco, produzido por Momma T, destaca-se a ambiciosa faixa-título, unindo os ‘spirituals’ americanos ao trip hop e à guitarra portuguesa, o hip-hop imaginativo de “Força Motriz”, com a participação de Mitó Mendes (integrante d’A Naifa e Señoritas), a intimista “Bandeiras Vermelhas”, a roqueira “Temperança” e a agridoce e dançante “Ruína”.
A marca de Hadessa manifesta-se principalmente no poder das suas palavras e nos momentos em que a sua interpretação surge mais solta e a mensagem é atingida com maior eficácia. “O fato de não querer atingir uma voz perfeita e de tentar cantar como sei contribuiu muito para me sentir segura nesta ideia de apresentar a minha voz e a minha impressão digital”, comenta a artista e prossegue exprimindo um desejo: “Peço que quem escutar o disco se foque mais nas palavras do que no som. Eu sei que é difícil, porque quando ouço música tenho dificuldade em me concentrar nas letras. Foi para ajudar à sua compreensão que fiz os lyric vídeos de “Mãe”, “Dedos da Mão” e “Força Motriz””.
Tematicamente, “Fortuna” aborda de forma honesta tópicos como maternidade, sexualidade, amor, desigualdades e abandono, entre outros, e a clareza com que interpreta as suas canções encontra igual tradução no modo como expressa o seu pensamento. “Gosto bastante de explorar o que podemos controlar e o que não conseguimos, o nosso destino e a nossa vontade. As coisas da vida que são mais complicadas de alterar estão relacionadas com o sistema em que vivemos. Há muitas injustiças que se mantêm na sociedade e isso passa para o plano individual, porque trabalhamos demasiadas horas em ambientes tóxicos, recebemos salários baixos e esses fatos afetam bastante a nossa saúde mental, as nossas famílias e até o meio artístico. O conceito do álbum deriva da vontade de quebrar estas normas e a forma conformista de encarar a realidade e inquietarmo-nos. É o meu dever enquanto artista pôr as pessoas a pensar e mexer com aquilo que está adormecido no coração delas”, explica.
Relativamente à apresentação do disco, Hadessa aponta o mês de Setembro como a data mais provável para se apresentar ao vivo, mas salienta que ainda não estão definidos os locais e revela a sua opinião sobre os shows. “Apesar de já ter tocado estas músicas ao vivo, o palco ainda é um espaço onde me sinto sozinha e tenho alguma dificuldade em chegar aos outros. Eu estou muito grata a quem me ajudou, mas o sucesso ou insucesso vai ser sempre meu. No entanto, sinto que em breve vou gostar de poder partilhar o palco com o público, porque isso faz-me falta. O que aprecio mesmo é a escrita das canções. Tudo o que eu faço a seguir é motivado pelo fato de não aguentar ver a canção sozinha e sem chegar às pessoas”, confessa.
Para Hadessa, os seus artistas incontornáveis são os Beatles, Amália Rodrigues, António Variações, A Naifa e os Dead Combo, mas também admira o trajeto artístico da cantora popular Ana Malhoa e aproveita para deixar uma mensagem aos leitores do Scream & Yell: “Cada vez mais, a nível cultural, o público brasileiro tem tido curiosidade relativamente à música portuguesa. De alguma forma, eu gostaria de fazer parte desse caminho. Se calhar não temos tão bons artistas, porque o Brasil é maior do que Portugal, mas existem músicos que merecem ser escutados. Acho que esta partilha entre dois países que estão tão distantes e ainda assim unidos pela língua é sempre boa de fazer. Por isso, façamo-la juntos”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Hadessa conversou com o Scream & Yell. Confira:
No seu disco de estreia, “Fortuna”, você percorreu diversos estilos musicais apenas por uma questão de gosto pessoal ou como forma de explorar as suas capacidades artísticas?
Quando eu escrevo as músicas, elas são muito parecidas entre si. São um conjunto de acordes, muitos deles tocados da mesma forma na guitarra ou no piano e só quando a canção está fechada é que eu penso na sonoridade que ela me faz lembrar. Algumas músicas já tinham sido escritas antes ou cantadas de outras maneiras, muitas vezes na base piano-voz ou guitarra-voz. O que eu fiz neste disco na exploração de estilos foi o que no Chão da Feira não tive oportunidade para fazer, porque tínhamos um número limitado de instrumentos musicais. Neste caso, como dispomos da tecnologia, permitiu que eu me divertisse mais na exploração das diversas sonoridades. Normalmente, se dependesse apenas da guitarra e da minha voz para fazer shows, provavelmente não faria tantas músicas rock e dificilmente colocaria essa energia. Trata-se de algo que há 30 anos só conseguíamos gerar se tivéssemos uma banda. Mas, já consigo explorar essa vertente com a voz e um instrumental e assumir essa atitude. Na faixa “Bom o Suficiente”, o processo de composição foi diferente e iniciou-se com a melodia. Isso acontece por vezes quando estou a dirigir e parece que sou atingida por um raio e começo a cantar. Nesse momento, procurei honrar a forma como me soava na cabeça e a música teve uma orientação mais jazzística. Como este disco é muito afirmativo na minha identidade, não quis fechá-lo numa gaveta, porque tenho dificuldade em escutar álbuns que são muito parecidos do princípio ao fim. Ainda tenho bastante tempo para mostrar ao público o que eu consigo fazer, mas é uma ‘ trademark’ minha a necessidade de procurar coisas novas e de obter mais estímulos. Quando estamos a fazer um disco, o processo de descoberta também é gratificante. Como eu sou uma artista independente e não tenho qualquer constrangimento com o meu público, que ainda está a ser formado, sinto que tenho de aproveitar a liberdade que disponho para fazer o que quero. Isso foi bastante libertador e a diversidade de estilos do álbum acaba por refletir essa procura.
Os seus primeiros clipes (“Fortuna” e “Ruína”) possuem uma carga simbólica forte e parecem mostrá-la como uma figura mística e singular. Foi essa a motivação principal quando escreveu o argumento dos vídeos?
O single “Fortuna” tem uma vibe especial e quando o lancei parecia que não havia nada que o igualasse. No fundo, ele mistura várias influências e ninguém se tinha lembrado de fazer aquilo. Como essa música foi feita com base na interpretação dos textos clássicos, eu queria que a componente visual fosse ligada à pintura das artes plásticas. Ela é inspirada em quadros de Josefa de Óbidos, que representam cenas católicas. O primeiro verso da canção refere-se à fortuna como sendo uma mãe, no segundo verso como uma amante e no terceiro como um filho. Eu inspirei-me nas pinturas de Josefa de Óbidos, das quais gostava e que remetiam para estas figuras. No caso de “Ruína”, a música tem uma letra triste, mas o vídeo é animado e dançante. Por isso, é muito importante para mim que haja uma intenção artística explícita nos clipes e no que eu transmito. Se eu puder, a minha arte pode ser feita de forma transversal e pretendo que isso se traduza nos vídeos, nos elementos visuais que acompanham o disco e na performance. Mas, nem sempre dispomos de orçamento para realizar os clipes mais espetaculares de sempre. No entanto, preocupo-me em transformar a música numa experiência global. A forma como me apresento e a mensagem que quero transmitir são aspectos que me importam. É difícil assumir a postura de ‘related diva’ em 2023, porque significa que alguém se destaca nas pessoas que fazem música e na lógica da indústria musical e do mercado artístico isso é algo que é necessário fazer. Eu quero deixar bem claro que não é para me evidenciar ou estar acima dos outros que faço as coisas do meu jeito. Enquanto puder, pretendo transmitir que a música da Hadessa está ligada a outras formas de arte. A minha escrita tem muita ligação com a literatura, pintura, filosofia e religião e gostaria de vincar isso para quem me está a ver e ouvir do outro lado.
Em antecipação ao álbum, você lançou igualmente um tríptico de lyric vídeos e singles centrados nas desigualdades sociais e de género. Constato que em “Mãe” há uma aparente resignação, “Dedos da Mão” exibe a sua consciencialização dos fatos e em “Força Motriz” você assume uma postura mais interventiva. Em que medida esta narrativa de protesto no feminino a define enquanto artista?
Define-me completamente. As músicas que você falou são as mais interventivas, mas todas elas convidam à reflexão e ao questionamento num nível mais profundo. Porque mais importante do que apontar um caminho é pôr as pessoas a interrogarem-se sobre o próprio caminho. No tríptico, eu organizei as canções para que tivessem essa sequência narrativa. Na faixa “Mãe”, que corresponde à segunda música do álbum, desenvolvi um exercício de escrita a que me propus e consistia apenas em descrever a realidade. As minhas canções têm como propósito contar uma história, mas nessa música fiz apenas uma pintura do que era essa vivência. Por isso, “Mãe” pinta um quadro de observação. Eu escrevi a canção durante a pandemia, numa época em que todos nos comunicávamos online e havia muitas conversas na Internet sobre mães recentes. Quando falava com amigas verificava que havia uma grande disparidade no trabalho de homens e mulheres relativamente ao cuidado dos filhos e da casa. Embora a letra esteja na primeira pessoa, eu peguei no que me disse uma amiga sobre o fato da situação ser má e do filho dela estar a crescer e a ver essa desigualdade em casa e escrevi a música na perspectiva do filho. Em “Dedos da Mão” há uma revolta a subir, como o Sérgio Godinho diz: “Uma raiva a crescer nos dentes”. Isso corresponde a três fases da vida, a infância e depois a juventude na qual as pessoas procuram trabalho e por vezes sujeitam-se a condições de emprego pouco éticas. A “Força Motriz” é uma faixa complexa e não posso dizer que seja a terceira fase da tomada de consciência. Porque há um interlocutor, ela está a falar com alguém e acaba por ser um tributo às mulheres que estiveram na resistência em Portugal durante o fascismo. Essa história e de muitas mulheres é muitas vezes apagada porque o trabalho delas era secreto e precisavam manter as casas e as tipografias clandestinas. Houve bastantes mulheres que foram presas com os filhos e torturadas e a canção é uma espécie de homenagem meio zangada, porque elas estiveram sempre a lutar por uma vida melhor e mereciam ter mais visibilidade. Quando falamos das personalidades que se destacaram durante a revolução de 25 de Abril de 1974, devia-se falar das mulheres, onde elas estavam e o que faziam. Embora a grande figura tenha sido obviamente o povo português. O que temos de fazer relativamente aos direitos das mulheres ainda está muito aquém do que precisamos. Isso não está desligado da melhoria da qualidade de vida. Mas, dentro do povo, ainda são elas que auferem rendimentos mais baixos e despedem-nas quanto estão grávidas ou a amamentar. Além de serem elementos ativos e úteis, o contributo das mulheres é imprescindível para mudar a sociedade.
A sua força interpretativa evidenciou-se na roqueira “Temperança” e sinto que você assinou um mote na estrofe “Ter-te aos poucos não me faz menos inteira / eu gosto de ser assim”, da intimista “Bandeiras Vermelhas”. Gostaria que me falasse destes dois momentos e da importância que eles representam para o disco.
Os singles deste álbum não falam de relações amorosas ou de amor, mas as canções que o abordam estão guardadas no disco para as pessoas depois escutarem (sorriso). “Temperança” é uma música muito interessante e foi inspirada inicialmente nos dois momentos díspares que a Billie Eilish criou na faixa “Happier Than Ever”. Claro que a minha música acaba posteriormente por não estar relacionada, mas essa composição influenciou-me. As duas partes já existiam como canções independentes. Uma delas era uma música infantil que eu tinha feito para um livro e a outra foi a primeira canção que escrevi com 15 anos. Na segunda parte de “Temperança, aquilo que escutamos musicalmente foi feito por mim há 20 anos atrás. O que marca um contraste forte na faixa é o fato de haver um momento de soltura e ele ser assumidamente roqueiro. Sinto que me expressei com mais liberdade. Eu tinha muito receio que o álbum ficasse bastante ‘dark’, porque ele vai ser lançado no verão e gostaria que fosse animado. Mas, preciso expiar a negatividade e se eu o fiz neste trabalho foi de forma ligeira. Voltando a “Temperança”, que é quase no fim do disco, é aí que eu dou tudo e liberto os fantasmas de 20 anos de mágoa contida. Já “Bandeiras Vermelhas” é uma música arriscada, porque é muito sensual e sexual e estava aterrorizada com aquilo que as pessoas iam pensar (risos). Mas, acabei por fazer o que queria e a interpretação fica para o público. A frase “Ter-te aos poucos não me faz menos inteira / eu gosto de ser assim” é engraçada e de certa forma é alusiva a diferentes tipos de relação. Hoje em dia o panorama dos relacionamentos está a mudar, mas todos os modos de nos ligarmos a outra pessoa e que sejam consensuais, abertos e conversados são válidos. Nesta canção eu falo de um amor que não é tradicional, ou seja, são encontros meio fortuitos ou pontuais. Mas, o fato de existirem não me torna a mim menos inteira. A vida é composta de tudo o que escolhemos fazer e se optamos pelo amor a conta gotas em vez de uma avalanche a nossa existência também pode ficar preenchida. Amar quando nos apetece também é uma opção válida. De certa maneira, acaba por ser a desdramatização do ideal romântico.
Dentro da música brasileira, você encontra algum artista ou banda que tenha influenciado o seu trabalho?
Chico Buarque, sem dúvida. Ele é um dos meus cantautores preferidos e o Caetano Veloso também. Mas, tenho que referir a Rita Lee não só pelo momento presente, porque se eu vivesse no Brasil era alguém que eu queria ter visto continuamente a trabalhar. Gostaria de destacar igualmente a Iza. Ela é uma boa cantora pop e eu adoro a sua música. A Iza lançou três singles de seguida, em 2022, e fui aí que eu me inspirei para lançar o tríptico. Nesse filme que ela fez com as músicas “Mole”, “Mó Paz” e “Droga”, existe uma colaboração com o Evandro (artista português) em “Mó Paz” e achei muita graça que na narrativa a Iza discorre sobre três momentos na vida amorosa de uma pessoa. Em primeiro lugar, quando está sozinha à procura do amor, depois quando encontra o amor e fica muito feliz e finalmente quando o amor acaba. Ela foi muito inspiradora para mim. Eu também gosto imenso da música romântica brasileira. A minha mãe é superfã do Roberto Carlos e há outros artistas dentro desse patamar como a Marília Mendonça. Aprecio a coragem linguística que os músicos brasileiros têm de contar histórias. Por vezes, sinto que o português de Portugal está um pouco preso nas regras e acaba por ser limitador. A tendência da língua é simplificar-se para ser melhor entendida por toda a gente. Em Portugal faz-nos falta isso, ou seja, descomplicar a língua para nos entendermos e dar espaço a que sejamos criativos e até desafiadores com a linguagem. Acredito que podemos ser mais livres e buscar essa inspiração nos músicos brasileiros.
Qual é a sua maior ambição musical?
Ser ouvida e compreendida pelo maior número de pessoas possível. Não tenho qualquer tipo de estratégia ou ambição, porque sou muito resistente a esta ideia da música ser uma indústria. Faz-me confusão que a arte esteja associada a um processo industrial e a música esteja relacionada com um sistema de vendas e marketing. Estas regras que aplicamos aos produtos estão a ser transportadas para a música. É difícil entender isso e perceber que devemos fazer o melhor que podemos neste circuito com os princípios que já existem. Mas, eu tenho o maior respeito por todos os artistas, sejam eles independentes ou não. Os músicos que têm uma estrutura à volta deles também trabalharam imenso para chegar a essa posição. No fundo, todos tentamos expressar-nos da maneira que sabemos para termos alguém que nos aplauda.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Joanna Correia / Divulgação