texto por João Paulo Barreto
A secura, sujeira e aspereza da fria noite da cidade de São Paulo em “O Homem Cordial” (2023), filme de Iberê Carvalho, nem de longe rima com qualquer romantismo que nos faça pensar na ideia de uma “terra da garoa”. Aqui, não há “dura poesia concreta em esquinas”. O que há é tensão e medo em ruas escuras, escadarias que nos levam a estados ofegantes de pânico, ansiedade e tristeza, bem como um asfalto que logo se verá sujo do sangue advindo da violência. Tal violência é aquela que vem da opressão policial e, também, do preconceito de classes. É, tragicamente, aquela que vem do rápido gatilho do julgamento para com quem é pobre e preto por uma sociedade confortável em seu status falso de dominação dentro de redes sociais capazes de esmagar pessoas.
Perpassado pelas horas de uma única madrugada adentro, o longa é um mergulho nas trevas daquela noite que começa com um show de rock interrompido por vaias e objetos atirados contra Aurélio (Paulo Miklos), cantor e guitarrista da Instinto Radical, banda de sucesso nos anos 1980 e 1990 e que ainda tenta manter certa relevância nos dias atuais dependentes de views, likes e de virtuais “seguidores”. A razão para a animosidade da plateia é um vídeo viralizado nas redes que mostra o músico ajudando um garoto em meio a uma tentativa de linchamento por conta de uma acusação de roubo de celular. A situação saiu do controle e um policial armado que seguiu correndo atrás do menino acabou sendo encontrado morto horas depois. Por sua fama e atitude de ajudar alguém que a internet crê ser um ladrão, Aurélio acabou sendo rechaçado publicamente nas redes e perseguido pela imprensa que o culpa pela morte do agente da lei. Já o garoto acusado e perseguido, segue desaparecido.
Na construção do seu texto e direção, Iberê Carvalho, que escreveu o roteiro ao lado de Pablo Stoll, coloca Aurélio seguindo noite adentro após se separar de seus companheiros de banda e se encontrar vagando sem dinheiro ou celular. Curiosamente, o objeto principal de construção de toda aquela narrativa, no caso um celular, um símbolo que serve, para o bem ou para mal, de arma e que capta a imagem da confusão que Aurélio tentou evitar, não se faz presente naqueles momentos em que o músico caminha por São Paulo de madrugada. Mas é justamente este o objeto que surge no ponto crucial de toda aquela trama, quando uma transmissão ao vivo feita em redes sociais acaba por salvar um grupo coagido de pessoas. Aurélio se vê livre do peso simbólico e aprisionador do objeto responsável por todo turbilhão de acontecimentos, mas acaba sendo outro celular que, possivelmente, salva a sua vida e a daqueles indivíduos.
É através da trajetória de Aurélio por São Paulo, do seu centro às ruas da periferia, com o músico reencontrando parte do seu passado, que “O Homem Cordial” traça seu modo de transmitir aquela reflexão acerca da perseguição que vitima muitos. Em um encontro com um ex-integrante da banda vivido pelo músico Thaide, Aurélio é convidado para um duelo de rimas em um palco de um bar. Lá de cima, não supera o próprio silêncio constrangedor ao ouvir da rapper vivida por Mc Soffia um resumo da ação genocida do Estado na periferia. Antes, escuta uma frase que define o filme: “Esse mundo visto pelos seus olhos de branco deve ser lindo. Maravilhoso.” A obra desenha ali um ponto de análise poderoso ao desconstruir a ingenuidade de seu protagonista perante as falas em defesa de uma força policial que, em teoria, deveria defender vidas, mas as trucida.
Com sua montagem criando aquela tensa sensação de passar das horas na madrugada, tendemos a esperar pelo pior. Esse sentimento mantém a audiência vidrada. Em uma escolha consciente, alguns rostos dentro daquela noite aparecem envoltos por sombras, como quando vemos Maria (Roberta Estrela D’Alva em potente atuação) confrontar Aurélio. Maria é mãe do menino desaparecido. Seu nome genérico, sua profissão de costureira entregue pela placa na porta e pelo desfecho do longa, a coloca comum, como muitas. Mais uma mulher suburbana a buscar por rebentos desaparecidos pela força policial e por uma sociedade racista. Sua face só aparece iluminada quando ela se aproxima do músico e lhe dá um ultimato.
E citando essa mesma cena emblemática, impossível não perceber a rima visual e temática que encontramos na subida da escadaria que leva à rua de cima, onde mora Maria, e quando os personagens se vêm ofegantes pelo esforço da subida. O mesmo acontece em uma das cenas finais com outro personagem a subir outra escadaria em busca da salvação de sua própria vida. Quando o filme enquadra o rosto de olhar perdido de Aurélio diante de uma frívola participação da banda em um programa de culinária, notamos que aquele homem cordial e privilegiado não será mais o mesmo após aquela noite. Quem dera, todos tivessem a chance de seguir em frente…
Leia a resenha de Renan Guerra sobre “O Homem Cordial”
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.