texto, vídeos e fotos por Bruno Capelas
Saiba como foi o Dia 1 e o Dia 3
Em tempos de bolhas e algoritmos, é fácil perceber uma tendência nos festivais das grandes capitais (Rio, São Paulo, BH): com lineups cada vez mais parecidos, eles atraem um tipo só de público – seja pelas brasilidades, pelo metal ou pelo hardcore, para ficar em três exemplos fáceis de citar pelo calendário paulistano recente. Em Porto Velho não é assim: bandas pop se misturam à galera do “rock pesado”, passando pelo rap e pelo reggae – em uma ideia que ajuda a aumentar o público do Festival Casarão, e ao mesmo tempo traz certo ar democrático ao evento.
Em sua segunda noite, o Casarão viu todo mundo junto e misturado, destacando a levada alternativa do Tuyo, a nostalgia emo do Hateen e o barulho do Menores Atos, lado a lado com bandas locais como a rapper Negra Mari e o tradicional grupo de reggae Leão do Norte. Quem abriu os trabalhos da noite no Zé Beer, porém, foi o power trio Matoteu, de Guajará Mirim, a 372 quilômetros de Porto Velho, bem na fronteira do Brasil com a Bolívia. O vocalista Paulo Santos, porém, é de Cabo Verde, enquanto a bússola sonora da banda se volta para Seattle, trafegando entre o grunge, o metal e o hard rock.
Logo depois veio a vez da rapper Negra Mari, que fez um set curto, mas impactante. Vinda de Ariquemes, ela traz versos de inspiração feminista – “não vai virar Amélia quem nasceu Geni” – e boa presença de palco, conseguindo ir além do flow básico da cena local de hip hop. É uma artista com potencial para seguir além de Rondônia, seja pelo balanço de “Preta Latina” ou por uma canção que usa o sampler de “Um Homem na Estrada”, dos Racionais MC’s, enquanto recupera o refrão de “Ela Partiu”, de Tim Maia (sampleada por KL Jay em… “Um Homem na Estrada”) para versar sobre feminicídio. Vale o play.
Com quase duas décadas de estrada, o grupo Leão do Norte deu sequência à segunda noite do Casarão, em sua primeira apresentação na história do festival. Liderada pelo cantor Yeshayahu LN, o grupo reza pela cartilha clássica do reggae, na inspiração de bandas como Tribo de Jah e Ponto de Equilíbrio, e fez uma apresentação correta, agradando o público local.
Quem também agradou os presentes foi um combo de artistas que passaram pelo Casarão em 2022: o encontro da banda de rock jovem Carvoli com o vocalista Bonfantti, que no ano passado havia capitaneado a apresentação da banda Darmma. A parceria fez bem aos dois, que mostraram evolução de um ano para o outro, trazendo covers bem sacadas como Alabama Shakes (“Don’t Wanna Fight”) e Miley Cyrus (“Flowers”, em roupagem de rock de bar). A Carvoli foi além do mundinho Muse e, cantando em português, remeteu ao Los Hermanos pós-Bloco mais roqueiro em diversas passagens. Já Bonfantti trouxe canções próprias sobre o amor que ousa sim dizer seu nome – de postura andrógina e glam, ele pode fazer algo simples, mas que significa muito em um estado de maioria bolsonarista como Rondônia.
Na sequência, quem fez Porto Velho se lembrar dos dias da juventude foi mesmo o Hateen, que inverteu o sentido daquela frase “a minha voz continua a mesma, mas os meus cabelos…”. Com quase três décadas de serviços prestados ao emo/hardcore, Rodrigo Koala exibiu suas longas madeixas na primeira vez da banda em Porto Velho, mas mostrou uma voz que falha em alguns momentos. Não que isso fosse um problema para quem sabe o que é decepção – e a empolgação do público acima dos 30 embalou a banda em hits como “Quem Já Perdeu Um Sonho Aqui?”, “Obrigado Tempestade” e, claro, a indefectível “1997”. A melancolia nostálgica também bateu quando Koala lembrou da MTV, enquanto o momento randômico da noite toda surgiu na hora que o vocalista deu um descanso aos colegas e puxou “Wonderwall” sozinho na guitarra, fazendo o público acender não só a lanterna do celular, mas até alguns poucos isqueiros. Old school é isso, bicho.
O peso seguiu sendo a tônica da noite com a apresentação do Machete Bomb, grupo do Paraná liderado pelo portovelhense Otávio “Madu” Madureira. Sentindo-se literalmente em casa, ele pintou e bordou com seu cavaquinho envenenado, cheio de distorção, em uma mistura de samba e rock que trafega entre o molejo do Mundo Livre S/A e a intensidade do Planet Hemp – especialmente graças à dupla de vocalistas Alienação Afrofuturista e Thestrow, que impressionou o público em busca da batida perf… ops.
Banda mais pedida pelo público de Porto Velho no retorno do Casarão em 2022, o Menores Atos fez um show que trafega pelo pop-punk, pelo noise e pelo rock triste com tranquilidade. Para os fãs, a apresentação rendeu muito, mas ao público distante da trajetória de quase duas décadas do grupo carioca o cenário foi diferente. Com um repertório de poucos refrões, boas doses de barulho e pouca dinâmica, com canções muito parecidas entre si (ainda que com boas melodias escondidas sob camadas de distorção), o grupo fez um show morno, que poderia funcionar melhor em outros espaços.
Instituição da música alternativa de Porto Velho, a Quilomboclada teve o papel de fechar o palco menor da segunda noite do Casarão. E o fez com muita dignidade, defendendo seu “manifestejo” e a estética da “música popular beradeira”, misturando tambores, guitarras e o som da beira do rio Madeira (a rima não foi proposital). Um show de peso, que incluiu velhas conhecidas do público como “Bate Cabeça Caboco”, “Rei Zumbi”, “Afroindígena” e “Boicore”, e que merece chegar a outras fronteiras além de Rondônia. Para quem ficou curioso, vale conferir o álbum “Manifestejo”, recém-lançado pela banda – ainda que valha a ressalva que o resultado em estúdio fica aquém do que a Quilomboclada faz ao vivo.
Responsável por trazer grande parte do público na segunda noite do festival, estimado em cerca de 350 pessoas, o trio paranaense Tuyo foi um caso de “ame ou deixe”: os fãs do grupo se juntaram à grade, choraram e se esgoelaram com as desventuras românticas e sociais de Machado, Lio e Lay Soares, enquanto uma parte do público já deixava o Zé Beer para trás, pensando em preservar os joelhos para o terceiro dia de festival. Quem ficou, porém, fez um coro tamanho capaz de emocionar os próprios artistas – embora seja necessário dizer que encobrir as vozes dos curitibanos não seja uma tarefa difícil graças à produção minimalista do trio, com baixo, guitarra, percussão e muitas, muitas bases. É preciso um pouco mais pra um grupo que tem trânsito pop e pode almejar a posição de headliner em festivais pelo Brasil.
E se o ecletismo da segunda noite não foi o bastante para quem foi ao Casarão no sábado, 29, o último dia de shows pode satisfazer a polivalência dos portovelhenses: de um lado, o festival traz uma escalação pop, com direito a Diogo Soares, vocalista do Los Porongas, e os baianos da Maglore. Do outro, tem peso e porrada com a referência local Coveiros e o Ratos de Porão. Já já a gente conta se essa mistura deu liga da mesma forma que limão, sal e cerveja. Saúde!
Saiba como foi o Dia 1 e o Dia 3
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie, na Eldorado FM, e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.