texto por Gabriel Pinheiro
Bobby Bailey, um jovem sem vínculos familiares e sem documentos, busca alistamento no exército-norte americano durante a Guerra Fria. Ele acaba, então, sendo vítima de um experimento biológico ultra-secreto, cujo objetivo era desenvolver o soldado ideal, uma verdadeira máquina de guerra. Inicialmente uma narrativa pensada para uma história do Hulk, Barry Windsor-Smith levou 35 anos para produzir sua obra-prima, “Monstros“, onde narra a trágica história de Bobby. O trabalho chega ao Brasil com tradução de Érico Assis pela Todavia Livros.
O quadrinho tem início com uma cena monstruosa. Um pai violento, uma mãe refém do casamento e um filho vulnerável estão em cena. Já adianto, não serão poucas as imagens fortes na obra de Windsor-Smith. A brutalidade dos temas é potencializada pelo esmero do trabalho gráfico. O quadrinista cria quadros de extrema violência com um cuidado sem igual, primoroso nos detalhes e nos traços. Mas, quebrando quaisquer expectativas que possamos ter, a HQ pode partir da violência gráfica para a sensibilidade do amor materno em um passar de páginas.
Aliás, são muitas expectativas quebradas pela obra. A destacar a própria concepção dos monstros da narrativa. “Monstros” é um título no plural. Se Bobby Bailey, após resultados não esperados no experimento genético em que foi cobaia, ganha um aspecto monstruoso e gigantesco, não é dele que o título trata. Do pai abusivo a um cientista alemão que consegue exílio em solo americano para continuar com experimentos iniciados na Alemanha nazista, são muitos os monstros que encontramos ao longo das páginas do quadrinho, que, em uma ou outra medida, cruzam o caminho do protagonista, da infância até a sua transformação.
Barry Windsor-Smith faz um longo estudo da psique dos personagens, se aprofundando nos traumas e no que os levam a realizar atos, por vezes, indizíveis. O próprio pai do protagonista, algoz da cena que abre o quadrinho e veterano do exército, não se restringe a uma dicotomia simples de “bom” ou “mau”. A experiência na Segunda Guerra Mundial cobra seu preço. Outro personagem, que, cumprindo ordens, se torna responsável por levar Bobby até o experimento secreto, passa a conviver com uma culpa feroz e busca meios de expiá-la.
O quadrinista norte-americano cria, ainda, um retrato assombroso dos Estados Unidos dos momentos finais da Segunda Guerra até a vida durante a Guerra Fria e a Guerra do Vietnã. A paranóia e o discurso bélico estão ali. “Monstros” traz um olhar crítico para todo o complexo industrial-militar norte-americano e sua capacidade de criar monstros.
A obra apresenta uma arte de deixar o leitor boquiaberto. Enxergamos os 35 anos dedicados por Barry Windsor-Smith ao quadrinho ao longo de cada página. O detalhe e a precisão dos traços do nanquim, criando desde pequenos quadros repletos de detalhes a páginas inteiras, que nos pedem tempo para observar tudo aquilo posto em cena. Diferentes formas de hachuras dão vida e textura aos quadros, criando, ainda, jogos de luz e sombra de tirar o fôlego. Há uma sequência de chuva, onde o artista se preocupa com cada gota que toca o corpo dos personagens, que, digo sem medo de parecer exagerado, é uma das coisas mais bonitas que vejo no campo dos quadrinhos em tempos.
Outro ponto claramente burilado pelo autor ao longo dessas mais de três décadas de trabalho é o intrincado jogo de conexões que ele cria, que perpassam cidades, países, gerações, o passado e o presente. Ainda que desafie a linearidade do espaço e do tempo, no fim da história, não parece haver um único ponto sem nó, um círculo perfeito que se fecha. “Deixa eu perguntar… o senhor acredita em destino? Digo… no destino quando ele une as pessoas… quando as vidas se ligam que nem os aros de uma grande roda… e não é coincidência, não importa como se veja.”
“Monstros” já era um marco dos quadrinhos muito antes de seu lançamento. Há quem não acreditava que isso algum dia aconteceria: Barry Windsor-Smith não apresentava um novo trabalho há 16 anos. Digo que a espera valeu a pena. Todo o caráter mítico da obra só é reforçado pela qualidade do material que temos em mãos. Temas como a culpa, o trauma, o abuso doméstico, a violência física e psicológica, a paranóia da Guerra e o racismo passam por cada uma de suas páginas, resultando num trabalho grandioso tanto no volume quanto naquilo que procura discutir. Um quadrinho monstruoso.
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.