entrevista por Alexandre Lopes
Se ser músico independente no Brasil já não é exatamente uma tarefa simples nos tempos atuais, imagine amplificar essa experiência partindo em uma mini excursão até países vizinhos dentro de um carro da década de noventa? Pois foi exatamente essa façanha que a banda fluminense gueersh apostou cumprir para divulgar “Tempo Elástico”, seu disco cheio de estreia e um dos registros mais interessantes de 2023.
Se o EP “Fogo Amigo” (lançado em outubro de 2022), já dava uma pequena amostra do som do grupo em quatro faixas, “Tempo Elástico” simboliza muito bem o que é a banda: uma disputa livre, amigável e despretensiosa entre linhas de guitarras a la Sonic Youth, baixo e bateria, mas ainda assim com uma sensibilidade pop abraçada por vocais suaves e sintetizador. Gravado ao vivo no Emissor Estúdio, braço sonoro do sítio agroecológico Sereno Sana (Macaé/RJ), o disco foi mixado por Lê Almeida, masterizado por Rafael Rezende e tem divulgação digital em conjunto pela Transfusão Noise Records e Feitio Records.
Empolgado com o fim das restrições pandêmicas, o quinteto formado atualmente por Lívia Gomes (voz, guitarra e sintetizador), David Dinucci (guitarra), Guilherme Paz (guitarra), Thomaz Alves (baixo) e Igor Arruda (bateria) se engajou em voltar aos palcos, montando uma mini turnê econômica com shows pelo sudeste e sul do País – passando por cidades como Rio de Janeiro, Campinas, Sorocaba, Curitiba, Balneário Camboriú e Porto Alegre – e esticando até Argentina e Uruguai, para tocar com as bandas locais de Buenos Aires e Montevidéu.
Com esse roteiro, a gueersh finalmente pôde botar seu som na estrada em uma vivência coletiva meio nômade com baixo orçamento e, por mais utópica que possa parecer, a iniciativa tem rendido bons frutos: “Fizemos amigos de verdade em vários lugares. Tem também as pessoas que se afetam pelo nosso som e vem contar pra nós depois. Essas são as melhores”, conta Lívia. “Conseguimos nos divertir com o que aparecia espontaneamente para nós, compartilhando tudo desde o climinha congelante, o famigerado choripan [pão com linguiça típico na Argentina e no Uruguai], poder vivenciar um pouco da cultura local e apreciar maconha prensada de Madureira com nossos hermanxs”, explica Igor.
Porém, como nem tudo é perfeito, a trupe passou por uma roubada bem literal: o automóvel da banda – uma Parati 1.8 de 1993, placa LHW3E40, carinhosamente chamada de “charanga” – foi furtado em Montevidéu, enquanto se apresentavam na cidade. A história foi bem documentada via stories no Instagram do grupo, que chegou a pedir ajuda financeira aos fãs e amigos. Mas apesar da baixa (a charanga era considerada uma “membra”) a gueersh não esmoreceu. “Pra mim fica como um impulso”, opina Guilherme. “Entendo o reinício dos ciclos como algo a ser respeitado, então vamos celebrar a morte da charanga mesmo não tendo seguro (risos)”.
Felizmente os instrumentos não estavam no veículo, e assim os músicos prosseguiram atravessando a fronteira levando os equipamentos no braço e correndo para não perder os ônibus. O Scream & Yell conversou rapidinho com a banda por e-mail sobre o disco, as apresentações mais recentes, o roubo da querida charanga e o que mais deve vir pela frente. Veja o papo abaixo:
Primeiramente, de onde saiu o nome da banda?
Lívia: Fomos juntando fonemas que soavam bem pra nós e saiu “guersh”. O segundo “E” foi ideia do Berna (da banda marianaa).
Vocês estavam em turnê pelo sul do Brasil e emendaram uma passagem pela Argentina (Buenos Aires) e Uruguai (Montevidéu) de carro. Como está sendo/foi essa experiência? E a receptividade do público dentro e fora do País?
Guilherme: Temos sido recebidos por anjos e retribuímos angelicalmente (risos). Pra mim, tocar fora nunca foi um sonho ou algo do tipo, mas de fato esse cruzamento com cidades é algo mágico, cada lugar tem sua aura e dialogar com isso (e pessoas) usando a música é muito distinto.
Lívia: Foi incrível passar pelo sul e pelos dois países; aprendemos a lidar com muitos desconfortos internos e a empurrar um monte de barreiras da comunicação com pessoas desconhecidas, às vezes em outro idioma, quase todo dia. O público tem sido ótimo, fizemos amigos de verdade em vários lugares e tem também as pessoas que se afetam pelo nosso som e vem contar pra nós depois. [Essas] são as melhores.
Igor: Foi a primeira vez de todos nós nesses dois países e foi incrível chegar e sermos recepcionados de forma tão carinhosa por pessoas que só tínhamos até então contactado virtualmente. Não levamos quase nada de grana, então com um esforço coletivo conseguimos poupar bastante e nos divertir com o que aparecia espontaneamente para nós, compartilhando tudo desde o climinha congelante, o famigerado choripan (pão com linguiça), poder vivenciar um pouco da cultura local e apreciar maconha prensada de madureira com nossos hermanxs.
E essa história do carro roubado? Como aconteceu e como vocês contornaram isso?
Guilherme: Pra mim fica como um impulso [para a banda]. Não estamos aqui por acaso ou a passeio e entendo o reinício dos ciclos como algo a ser respeitado, então vamos celebrar a morte da charanga mesmo não tendo seguro (risos).
Lívia: Acho que ainda estamos contornando isso. É complicado. A charanga era um personagem, “membra” da banda também, tinha muito valor sentimental ali, muito tempo e cuidado dedicados a ela. Quem tem carro velho sabe como a gente se apega. Nós fomos tocar sem ela, de carona com a Vicko (nossa amiga uruguaia) e então, quando voltamos às três da manhã, não estava lá onde estacionamos. O dia já estava muito estranho e foi difícil acreditar que tinha sumido assim, do nada. Ao mesmo tempo, rolou esse sentimento em grupo de seguir em frente, afinal é algo material; se vai, tem que voltar de alguma forma.
Igor: Fizemos nossa última apresentação em Montevidéu e fomos com o carro da nossa amiga que estava nos hospedando e deixamos a Parati estacionada na rua perto da casa dela, como fizemos todos os dias. Quando voltamos, ela nos deixou para descarregar as coisas e nos arrumar para seguir para Pelotas na manhã seguinte, já imaginando a normalidade de termos de amarrar todos os equipamentos em cima do carro e tudo mais. Mas a Vicko voltou e só pudemos receber de forma incrédula a notícia trágica do sumiço da nossa charanguinha. Demorou um pouco pra ficha cair e até reagimos de forma bem-humorada nos primeiros instantes. Fomos na delegacia, consulado brasileiro, colamos cartazes pelas ruas de Montevidéu e tudo mais o que poderíamos fazer… Foi preciso não deixar a tristeza dessa situação tomar conta, ainda mais com uma porção de apresentações pela frente. Tivemos que nos reestruturar de várias formas pra conseguir sair de Montevidéu e seguir adiante na esperança de que a charanguinha seja encontrada em algum momento e já aproveitando pra voltar por lá pra buscá-la. Tivemos também muita ajuda de amigos e família e pessoas que se sensibilizaram com essa situação. Então vimos que não poderíamos reagir de outra forma senão continuar e terminar o que começamos.
Como foi o processo de composição para o EP “Fogo Amigo”? E para o disco “Tempo Elástico”?
Guilherme: A gente curte improvisar, tiramos as ideias de ficar tocando juntos por horas e horas. Eu costumo desenhar as músicas, mas tento intencionar a direção mais do que controlar o processo.
Lívia: Para o “Tempo Elástico” a gente foi compondo as primeiras músicas com três guitarras, depois entrou Phill [ex-baterista] e Thomaz e foram dando corpo e compondo outras partes juntos.
O álbum foi lançado pelo próprio selo de vocês, o Feitio, em parceria com o Transfusão Noise Records, do Lê Almeida, que também mixou o trabalho. Como aconteceu essa dobradinha?
Guilherme: Lê é amigo de tempos, curtimos muito o trabalho dele e naturalmente trocando ideia surgiu isso. Eu sou bem insatisfeito com o som de “Tempo Elástico”, muito por como a gente gravou, tocando alto pra caralho e por falta de percepções que vieram aos poucos depois.
Lívia: Lê apoiou a banda desde o começo, abrindo espaço pra gente no Escritório [sede da Transfusão Noise Records] e nos [eventos] Fechamentos, sempre pilhando coisas. Mixar o “Tempo Elástico” foi mais uma dessas pilhas, era um momento que a gente precisava de gás pra terminar e lançar o disco que já estava gravado há quase um ano e pra isso o Lê foi fundamental.
No som de vocês dá pra perceber uma boa influência de guitar bands. Quais vocês diriam que são suas referências principais?
Guilherme: Quando era adolescente, um grande amigo (beijo Will!) me apresentou Velvet Underground, Neu!, Television… Mas o que me instiga mesmo é ouvir algo pela primeira vez, e dá-lhe pesquisa! Cada lugar tem seu modo musical, rítmico, sua ligação espiritual com a música. É esse feeling que me conecta mais. É incrível como ele vem de lugares inusitados. Nessa viagem ouvimos coisas incríveis de música livre no Uruguai, tem uma turma muito boa fazendo música lá e conseguimos acessar isso tocando com um outro projeto lado B que levamos na bagagem. Isso tudo é algo bem pessoal, somos um grupo e cada um curte mais um tipo de música, adoro isso.
Igor: Eu fui criado por uma família de beatlemaníacos, então desde muito novo venho bebendo da fonte desse rock mais clássico, que inclusive continuo adorando e isso acabou me influenciando demais musicalmente, ainda quando mais jovem.
Qual o repertório do show? Vocês estão tocando composições novas além das faixas do disco e do EP?
Igor: O repertório tem sido bem dinâmico justamente por estarmos com muita coisa fresca de 2022 pra cá. E aproveitamos os shows para podermos evoluir algumas dessas novidades que vão surgindo, que ganham cada vez mais vida se desenvolvendo ali no palco mesmo; com improvisos, acidentes e essas coisas desse tipo que ajudam a desenvolver e nos conectar cada vez mais essas novas ideias. Mas sim, geralmente rola coisa antiga também, só que com algumas transformações naturais que acabam surgindo com uma estrutura nova e mudanças na formação do grupo.
Essas novas composições soam diferentes do “Tempo Elástico”? Qual a mudança que vocês enxergam nelas?
Guilherme: Completamente. “Tempo Elástico” foi um exercício de composição, um caderno de caligrafia (risos). Tô muito curioso em como criar moldes e padrões mais pessoais, pesquisando ritmos e tensões, craquelados, brincando mais.
Lívia: Sim, estamos tentando soltar mais essas composições, elas têm sido mais divertidas, outras mais atonais e caóticas. As partes de canção também estamos batalhando para fazer o som funcionar melhor em grupo, aprofundando o que aprendemos com o “Tempo Elástico”.
Uma pergunta de nerd de equipamento: pelos vídeos ao vivo, reparei que vocês usam instrumentos da marca brasileira Giannini (uma guitarra Supersonic, talvez uma Stratosonic e um baixo Sonic). Isso é uma opção estética, por conveniência ou apenas calhou mesmo?
Guilherme: Eu uso porque tem um som delícia, quentinho (risos), chega a derreter manteiga. E adoro a pegada dela. Mas de fato tenho porque é a melhor coisa que pude comprar com a grana que nem tinha (risos). Ah, é a guitarra de “cor goiaba”.
Por fim, quais os próximos planos da gueersh depois dessa turnê?
Guilherme: Gravar!!!! E seguir tocando onde pudermos, agora mesmo sem carro e falando isso na estrada, que não temos dinheiro nem pra chegar nos nossos próximos shows. Mas essa é a intenção: som!
Lívia: Voltar pra nossa terra e gravar as músicas novas no inverno do Sana.
– Alexandre Lopes (@ociocretino) é jornalista e assina o www.ociocretino.blogspot.com.br