texto de abertura Renan Guerra
faixa a faixa por Juliano Gauche
Às vezes a realidade é tão contundente, tão forte em nosso cotidiano, que é preciso alguma coisa que nos leve além. A poesia, a arte, os sonhos e a música são caminhos possíveis e parecem ser esses alguma espécie de antídoto encontrado pelo cantor e compositor Juliano Gauche em seu quinto trabalho de estúdio, o recém-lançado “Tenho Acordado Dentro dos Sonhos” (2023). Composto durante o isolamento devido à recente pandemia de Coronavírus, na praia de Manguinhos, no Espírito Santo, o disco traz sete canções que abordam o mundo dos sonhos, mas que ainda assim desaguam na nossa realidade cotidiana.
Criado de maneira minimalista entre voz, guitarras e violões, o novo trabalho de Juliano ganhou camadas extras, com a colaboração do produtor Sérgio Benevenuto, que acrescentou linhas de guitarras, synths e melotrons a essas canções. O disco foi gravado nos estúdios do selo Índigo Azul, em São Paulo, em novembro de 2022, por Klaus Sena, também responsável pela co-produção, pianos, xilofones, sintetizadores, além da mixagem e masterização. As gravações também contaram com o guitarrista e violonista Kaneo Ramos, presente nos discos anteriores “Afastamento” (2018, que Gauche definiu aqui no Scream & Yell como “mantra mecânico, discoteca dark, pós punk lírico, caneta sangrenta”) e “Bombyx Mori” (2020). O cantor e compositor André Travassos, da banda Moons, é o convidado escolhido por Gauche para dividir letra e voz na faixa “Ondas que Acordam”, que assim ganha uma versão bilíngue, português/inglês.
Segundo Gauche, o disco nasceu de seu fascínio “por autores como Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Rimbaud, e suas paixões por temas metafísicos. Vem de como meus próprios sonhos vem se tornando mais lúcidos com o tempo e de como essa relação com meu inconsciente vem me ajudando a lidar com as questões mais delicadas do dia a dia. Vem desses dias de isolamento em que ficamos dormindo e acordando dentro da mesma rotina, encarando os acontecimentos como se estivéssemos presos num imenso pesadelo, e ao mesmo tempo só restando como arma, sonhar, querer profundamente, desejar, esperar com esperança. Vem dessa esperança que eu me vi forçado a produzir”.
Todas essas questões transparecem nas canções que, se inspiradas pela realidade, ganham contornos poéticos que podem crescer conforme as experiências de cada ouvinte. Para o Scream & Yell, Juliano Gauche preparou um faixa a faixa em que conta detalhes íntimos de suas composições e como fatos complexos foram expurgados através das canções. A perda do pai para o Covid, o isolamento social e as relações familiares são pano para que as canções de “Tenho Acordado Dentro dos Sonhos” se torna ainda mais interessantes e tocantes. Confira abaixo o faixa a faixa completo:
01) “Horas que Vem, Horas que Vão”: Através dos próprios sons dos acordes que eu usei ali para compor a canção, me veio a meditação sobre o fluxo cíclico do tempo, esse efeito de dar voltas e ao mesmo tempo seguir em frente, e como foi minha saída de São Paulo, minha tentativa frustrada de voltar a morar perto da minha família e não conseguir ficar, de acabar morando num lugar que nunca tinha imaginado, o passar do tempo pra mim tem tido esse efeito arrastão, e essa música tenta capturar isso.
02) “Ondas que Acordam”: Começa pela sensação de realmente acordar todos os dias com o som das ondas, que começou a invadir meus sonhos desde que eu me mudei para uma praia com a minha companheira, Sil Ramalhete. Ali passamos todo o período do isolamento. Ali eu perdi o meu pai para o Covid. E a canção vem como que para organizar tudo isso em mim. Nela eu me atenho ao que ficou de melhor depois de tudo. Às melhores memórias. Como a paixão do meu pai pela beleza do lugar onde morávamos. Paixão essa que eu jogo na música logo nos primeiros versos. Outra memória que ela me evocou, até mesmo pela natureza harmônica que usei, foram as tardes dirigindo com a Sil pela cidade vazia, pelo isolamento, ouvindo a banda Moons, que foi de onde me veio a ideia de convidar o André Travassos, vocalista da banda, para colaborar na composição, e ele trouxe a parte em inglês, que caiu como uma luva para todo o sentimento ali envolvido.
03) “É Sempre Noite em Meu Coração”: Eu estava na varanda olhando o céu e vi um par de luzes passando entre as nuvens, movimentando-se como dois golfinhos brincando, até se apagarem na direção do mar. Na hora pensei em escrever um texto falando sobre meu entusiasmo com esse tipo de fenômeno. Mas na mesma hora me lembrei que havia publicado no Facebook trechos de um livreto que escrevi contando várias histórias absurdas sobre mim mesmo, e que tinha chocado muita gente. Desisti do texto, mas resolvi compor para aproveitar a energia. A música vem dessa vergonha que pesa depois de me expor assim.
04) “Desde Quando eu Te Vi”: Eu encarei o Bolsonarismo como uma enorme necrose na sensibilidade brasileira. O aqui onde mal posso me ver, é esse tipo de sociedade que quase nos tornamos. Que chegou ao ponto de aceitar que pessoas morressem para defender um projeto fascista. Como aconteceu com meu pai. Os olhos tão pesados, são o que tiveram que ver isso de perto.
05) “Nos Cânticos de Lá”: Essa música poderia ser encarada como jingle para celebrar a volta à vida depois do isolamento. Mas eu busquei fazer as perguntas ali de uma forma que servisse tanto para os que ficaram, quanto para os que morreram. As perguntas procuram afirmar conceitos espiritualistas, tipo: Como é viver outra vez? Como é ser feliz como leu nos cânticos de lá? Como é caminhar como se nunca mais? No fim, as perguntas refletem como eu gostaria que todos que partiram estivessem.
06) “Nyx”: Foi a primeira a ser composta e a que serviu de “DNA” harmônico para outras do disco, como “Desde Quando eu Te Vi” e “É Sempre Noite em Meu Coração”. O solfejo, ou seja lá como se chama aquele tipo de voz que faço ali, me deixou tão eufórico, que não senti necessidade de fazer uma letra. Por ter sido a primeira e ter dado vida a outras duas, eu a batizei de “Nyx”, depois de ler no “Mulheres que Correm Com Lobos” que Nyx é a personificação da noite.
07) “Antes do Dia, Antes da Luz”: São dois quadros de um mesmo evento. No primeiro quadro eu acordo dentro de um sonho onde meu pai revive e tem nos olhos uma expressão de que tudo é muito bonito. O que aconteceu mesmo, enquanto eu o acompanhava durante o coma. O outro quadro sou eu num quarto escuro depois que ele se foi, tentando dormir e, quem sabe, sonhar outra vez.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava. Todas as imagens no post são de Pedro Clash, responsável também pela arte da capa do disco.