texto de Renan Guerra
Ari Aster conseguiu construir uma curta e bem recebida carreira no cinema de horror com os filmes “Hereditário” (2018) e “Midsommar – O Mal Não Espera a Noite” (2019). Sua forma narrativa que consegue criar tensão, chocar o espectador e ainda trazer uma série de debates sobre psicologia e metafísica se transformou em uma espécie de tendência e muitos cineastas tentaram enveredar pelos mesmos caminhos obscuros, alguns com mais sucesso, outros nem tanto. O público estava ansioso por um novo projeto do cineasta novaiorquino e a megalomania da produção de “Beau Tem Medo” (“Beau Is Afraid”, 2023) se transformou em uma série de notícias misteriosas: o que podemos esperar do novo filme de Ari? O que esperar desse encontro do diretor com o ator Joaquim Phoenix?
O material prévio e as parcas informações também não ajudaram muito e quem assistiu ao trailer de “Beau Tem Medo” ficou ainda mais confuso. Qual é o plot desse filme? É um terror? Uma aventura? Segundo a Wikipédia, o filme seria classificado como uma “comédia ácida e surrealista de horror”, o que é uma definição possível, mas também pode ser lido por alguns como uma “aventura familiar dramática” e para outros como um filme completamente assustador sobre existir em nosso mundo. “Beau Tem Medo” é uma expansão do curta “Beau”, de 2011. O plot do curta é o início do novo filme: Beau, um homem de meia-idade bastante neurótico, precisa ir visitar a mãe, porém, por uma série de situações, sua chave é roubada e ele não sabe como reagir a isso.
No novo filme, essa pequena situação é o ponto de partida para uma experiência assustadora e surrealista em que Beau acaba por enfrentar seus maiores medos. Joaquim Phoenix dá vida ao protagonista em uma atuação minuciosa que constrói os pormenores da neurose de Beau, nos colocando de forma submersa em seus medos, suas tensões e suas psicoses. A violência urbana, o terror das cidades grandes, a solidão e as incertezas são costuradas no primeiro ato do filme de uma forma aterrorizante e, com isso, situações completamente banais se tornam um tour de force. Para quem é ansioso, o filme de Ari Aster é uma espécie de teste de resistência: tudo aquilo que a nossa mente gosta de inventar como possibilidades assustadoras e completamente improváveis acaba se tornando real na jornada de Beau. E lá se vão três horas de filme…
Em uma narrativa que passa por diferentes estágios, como numa via crúcis, entre um casal que vê em Beau uma figura para suprir o filho que eles perderam na guerra, um encontro com uma trupe de teatro itinerante e um reencontro com todos os traumas de seu passado, podemos destacar a atuação assustadora de Nathan Lane e as presenças brilhantes de Parker Posey e Patti LuPone – essa última aqui em atuação absurdamente maluca. Além disso, destaca-se também Armen Nahapetian, que interpreta o jovem Beau, e que se tornou meme na internet, já que por seu rosto bastante único muita gente pensou que ele era apenas uma criação de CGI no cartaz do filme. Enfim, aqui não vamos nos aprofundar para não dar spoilers, mesmo que, por mais que se saiba os plots do filme, a questão principal é que a experiência sensorial criada por Ari é bastante única e é ela que faz a diferença. E aí as reações do público podem ser as mais diversas: ódio, repulsa, medo, riso ou mesmo antipatia. “Beau Tem Medo” é bastante divisivo e talvez seja difícil sair indiferente da sessão.
Por aqui acreditamos que trata-se de um filme complexo, com nuances amplas e que consegue trazer o olhar único de Aster sobre como as relações familiares nos constroem e quanto elas são definitivas de quem somos – todo aquele papo freudiano familiar. E para essa história se desenvolver vemos ecos de outras muitas referências como os body horrors de David Cronemberg, o surrealismo de David Lynch e uma boa dose da acidez de Todd Solondz. Falando em Solondz, é possível fazer um claro paralelo entre “Beau Tem Medo” e “Palíndromos” (2004), em que a sua protagonista Aviva se perde em uma jornada entre a fábula e o horror.
Outros paralelos são possíveis como como o terror psicológico de “A Hora do Lobo” (1967), de Ingmar Bergman, ou mesmo as ruminações existencialistas de “Sinédoque, Nova York” (2008), de Charlie Kaufman. Enfim, tudo isso são paralelos possíveis, diálogos que se abrem, mas o filme de Ari Aster ainda soa como algo bastante inventivo e fresco, em uma suntuosa exploração da linguagem cinematográfica e dos diferentes gêneros. Estranho e fora da curva, esse é mais um trabalho que prova que a mente de Ari Aster é uma das coisas mais assustadoras e interessantes do nosso tempo.
Com isso tudo fica claro que “Beau Tem Medo” é uma experiência bastante única e – obviamente – não agradará a todos, mas quem se deixar levar pela narrativa e se abrir a explorar seus medos ao lado de Beau será recompensado com uma avassaladora sessão de terapia coletiva.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.