texto por João Paulo Barreto
“Cerejeiras em Flor” (2008) se apresenta como um contundente retrato do quão efêmero pode ser um relacionamento. Mesmo aqueles de longa data, nos quais óbvias almas gêmeas se vêem perdidas sem a presença do outro e os filhos já crescidos tornam perceptível a longevidade daquela relação.
Refilmagem alemã de “Era uma vez em Tóquio”, filme de 1953, a versão da diretora alemã Doris Dörrie conta, inicialmente, a história de Rudi e Trudi Angermeier, um casal inter-racial (ele é alemão, ela de origens orientais) pais de três filhos que, adultos, já deixaram a casa e a responsabilidade deles. Rudi (Wepper) é um funcionário obstinado do setor de reciclagem de material descartável. Obstinado no sentido de manter a própria rotina de modo linear, sem que nada possa alterá-la, ele pega o mesmo trem diariamente e come, sempre às 13 horas, o sanduíche preparado por Trudi (Elsner), que sempre acompanha uma maçã. O bordão de Rudy é “An apple a day, keeps the doctor away” (algo como “uma maçã ao dia, a visita ao médico adia”). O curioso é que não o vemos degustar a fruta em momento nenhum do filme. Trudi vive seu dia a dia em detrimento ao conforto do esposo. Quando jovem, se interessava por balé, mas renunciou a suas ambições artísticas pela vida em família. É triste observar seu olhar melancólico ao ver estudantes de dança se dedicar àquela arte.
Diagnosticado com uma doença degenerativa, Rudi tem o seu laudo médico escondido por Trudi, que não sabe como dizer ao seu marido que este morrerá em breve. Como ela mesma afirma, não há nada que ela queira presenciar sem ele. Até mesmo seu sonho de ver o Monte Fuji, no Japão, está atrelado à condição de estar junto ao seu amado. Sozinha, seria como se ela não estivesse lá. O modo como Trudi se dedica ao seu parceiro é tocante. Abdicando de seus sonhos pela vontade de agradar Rudi, ela se deixa convencer do argumento egoísta, mas não intencional, dele de que o Fuji é apenas mais uma montanha e que não valeria a pena dispensar todo aquele dinheiro em uma viagem ao Japão para visitar Karl, o filho que vive em Tóquio. Para o pai, seria mais barato se Karl viesse até eles. “Talvez no próximo ano, quando eu me aposentar”, afirma Rudi sobre a possibilidade da viagem. As lágrimas de tristeza de Trudi molham o lenço que esta passa a ferro antes de colocar na perfeitamente arrumada bagagem de Rudi, em uma rima visual que encontrará seu par no terceiro ato, quando veremos a mala arrumada pelo próprio dono e não por sua amada.
Uma viagem para Berlim, onde vivem dois dos filhos, é planejada pela esposa sem que Rudi desconfie de seu caráter de despedida. Ocupados em suas próprias vidas, os filhos Klaus e Karolin não sabem como entreter os pais na temporada que estes passam com eles e acabam por deixar transparecer certa insatisfação. A casa onde vive Klaus, sua esposa e o casal de filhos pequenos parece receptiva, apesar de pequena, afinal, o casal de meia idade precisa ocupar o quarto dos netos. Nesta chegada a casa de Klaus percebe-se um contraste com a residência dos seus pais. Um ambiente mais doméstico é apresentado, com mais cores e vida em relação ao lugar onde mora o casal. Um tapete vermelho chama a atenção e a imagem de crianças se divertindo com jogos eletrônicos contrasta com o silêncio da casa que vimos no começo da projeção.
O quarto das crianças merece uma atenção especial: as paredes pintadas de bege não representam a alegria que um quarto infantil deveria transmitir. De forma sutil, a direção de arte demonstra uma tentativa dos pais para captar um ambiente habitado por crianças ao pendurar desenhos feitos por elas nas paredes. Mas o verdadeiro ambiente daquele lar está ali, fixado naquele quarto. É um lugar frio e sem cor, percebido também pelo modo como as crianças recebem os avós. Não há aquela festa característica de netos ao rever aqueles que representam doces, carinhos e dengos. Há apenas um sorriso e a atenção retorna aos jogos eletrônicos. Utilizando outro modo de demonstrar o apego que qualquer avó tem para com os netos, há uma cena tocante onde vemos a garotinha massageando as costas do avô. Ao terminar, Trudi dá algumas moedas para a neta e a abraça de forma tenra. É o máximo de intimidade que ela consegue com os netos que tanto deve amar. Sobre os filhos, Trudi afirma: “Eu consigo me lembrar perfeitamente deles quando eram crianças. Agora eu já não sei quem são”. Pragmático, Rudi replica dizendo que eles estão bem. Estão com saúde. Que ela não deve esperar mais do que isso – num perfeito sinal da personalidade racional do marido em contraste ao emocional da esposa.
A relação dos dois com os filhos não é muito diferente da ausência perceptível dos netos, que ainda não têm a consciência da importância daquele parentesco. Diferente dos filhos, Karolin e Klaus, que se vêem sem saber como agradá-los apenas por vaidade. O primeiro pede que sua namorada, Franzi, leve sua mãe em um passeio turístico por Berlim, num ato de pura falta de compromisso. Ao se despedir dos pais, ela chora ao perceber que poderia ter feito mais, mas foi impedida por algum sentimento de negação para com as próprias raízes.
A cena em que Trudi presencia e se emociona com uma apresentação do Balé Butoh, enquanto Rudi, avesso a representações artísticas, a aguarda do lado de fora do teatro, demonstra bem a relação de ambos e a forma como os acontecimentos futuros transformarão os dois de forma irremediável. A ida para o litoral do Mar Báltico, após aquela desastrosa visita aos filhos em Berlim, perece ser mais proveitosa do que o tour pela capital alemã. A tranqüilidade do mar leva Rudi e Trudi à calma que a terceira idade representa. Cativada pela beleza do balé, Trudi convida seu esposo para uma dança onde encena junto a ele os passos que o bailarino fez no tablado e o faz esquecer-se do quão ausentes seus filhos demonstraram ser. A emoção da seqüência é arrepiante. Visivelmente abalada pela possibilidade de perder o marido em breve, Trudi demonstra-se emotiva e ofegante ao beijá-lo. Em mais uma rima visual, perceberemos o significado daquela dança para a relação entre ambos em outro momento chave da película. Observando o mar, Rudi comenta que gostaria de ter suas cinzas atiradas nele quando morresse. Assustada, a esposa pergunta o que o leva a pensar isso naquele momento. E a questão nos faz lembrar a real intenção daquela viagem.
Talvez por já estarmos nos acostumando àquela paz que a relação do dois emana, sintamos um choque ao perceber a morte de Trudi e o grito de dor do seu marido ao acordar e perceber que a esposa partiu enquanto dormia. Na última tarde juntos, eles voltaram a conversar sobre a relação com os filhos e, em uma referência que saberemos em breve sobre o balé Butoh, a diretora Dörrie filma as sombras dos dois na areia da praia. Em um gesto de puro afeto, Trudi divide o calor de seu agasalho da forma que pode, para mantê-lo também aquecido. E, como numa despedida, dança os passos do Butoh com um desengonçado Rudi.
A dor da perda é representada de modo sutil pelo filme. Apesar de obviamente abalado pela morte de sua esposa, Rudi demonstra sua tristeza de forma calma, sem desespero. Um retrato do modo como sua relação com Trudi foi calcada. É perceptível a desesperança que o homem sente ao saber que nunca vai poder demonstrar o amor que sentia pela mulher com quem compartilhou uma vida. A atuação de Elmar Wepper é magnífica. No seu olhar, nota-se uma incógnita sobre como serão os seus dias daqui pra frente. Ele observa o mar sem ondas, tão incomum, que reflete justamente o modo pacífico como Trudi morreu. À mesa com os filhos, observamos quadros com mares revoltos que fazem referência justamente ao ambiente desconfortável onde os órfãos agora se reúnem para honrar a morte da mãe.
Sem a presença da esposa, Rudi perde o próprio rumo. Solitário em seu próprio lar, passa por constrangimento pela ausência dos filhos à cerimônia e se vê perguntando pela esposa para as paredes da casa onde dorme ao lado do vestido da falecida. Decidido a viver sozinho os sonhos de viagem que ela teve, segue para o Japão no intuito de contemplar o tão sonhado Monte Fuji e as cerejeiras em flor que a estação do ano propicia.
A partir deste ponto, o filme remete em certo ponto a “Encontros e Desencontros” (2003), de Sofia Coppola. Em uma cidade onde nenhuma palavra ou direção parece indicar a Rudi o caminho a seguir, a displicência do filho Karl a, também, não dar a atenção que o pai merece como hospede, leva-o a vagar por uma Tóquio caótica. De forma elegante, sem nos fazer esquecer a carga de tristeza que aquele drama traz, o roteiro insere algumas cenas em que se percebe como pode haver graça na situação do protagonista em Tóquio. Em um momento ele experimenta usar uma placa pendurada ao peito com as indicações de quem ele é e como pode-se contatar alguém responsável por ele; em outro, é abordado por um jovem local que oferece “abraços de graça”.
Metódico como sempre, Rudi aplica seus conceitos de trabalho na casa do filho, ao separar o lixo para reciclagem e ao amarrar um lenço em um ponto comum da metrópole com a intenção de poder achar a rota de volta para o apartamento. Em seus passeios e caminhos perdidos pela cidade e por entre as cerejeiras em flor, ele conhece Yu (Irizuki)), uma dançarina do balé Butoh que se apresenta ao ar livre. Ela lhe explica os significados da dança e lhe traz novos conceitos sobre aquilo que Trudi sempre tentou fazê-lo crer a respeito da arte. Mas a tristeza pela morte dela ainda pesa em sua mente. Tanto que ele usa as roupas que pertenceram a ela nos locais que visita, na ilusão de que Trudi também possa apreciar a viagem que sempre sonhara.
A relação entre Rudi e Yu se estreita. Uma genuína amizade que somente pessoas que passaram por dores semelhantes surge. Ela, mesmo já tendo superado, diz que dança para a mãe que perdeu. Ela baila enquanto segura um telefone numa clara referência à forma de comunicação que a arte pode apresentar entre os homens. Ele simboliza justamente essa comunicação que a jovem nunca teve com a mãe e isso, claro, cria uma paridade com a relação entre o viúvo e sua amada. “Minha mulher sempre foi como uma fera presa em uma gaiola”, afirma Rudi. “A minha mãe era como um pato a mergulhar no rio em seus altos e baixos. Uma hora triste, outra hora feliz”, replica Yu. Nada mais contundente.
Nas visitas diárias aos locais onde Yu se apresenta, uma cumplicidade cada vez maior se cria entre o senhor e a jovem. Ela segue explicando os conceitos do Butoh e sua relação com as sombras, as mesmas sobre as quais tivemos um vislumbre no começo do filme. Mesmo conversando em inglês, a japonesa e o alemão têm certa dificuldade para expressar certos pensamentos. Mas a simplicidade que a empatia entre os dois emana é suficiente para que, através de simbolismos, seja possível compreender cada idéia. Como, por exemplo, quando ela compara a relação entre Rudi e sua esposa com a refeição feita com repolho e ilustra o que quer dizer se enrolando no plástico onde está sentada.
Apesar da saúde deteriorada, o que percebemos nas recorrentes cenas em que vemos Rudi tomando seus remédios, ele se esforça em ir ao sonhado Fuji. E não é de se surpreender que Yu o acompanhe na viagem. A vista da montanha é embriagante. Após dias de espera para que a nevoa que cobre o monte se dissipe, numa referência perfeita feita por Yu a uma possível timidez do monumento natural, Rudi pôde vislumbrar toda a beleza que Trudi sonhou em contemplar. Em uma cena coreografada de forma emocionante, percebemos que o amargurado senhor pôde finalmente alcançar a paz ao apresentar o local a sua querida mulher. Sim, ela se faz presente àquele momento. Seu balé se fez presente do mesmo modo. E mesmo que os três filhos, tão atarefados com os próprios umbigos, não percebam como fizeram falta para os pais e custem a entender as circunstâncias de tudo aquilo que seu velho viveu, para Rudi não faz mais diferença. A pessoa que ele tanto amou voltou para seus braços. E, nesse intento, ele encontrou em uma estranha a figura de uma filha que nenhum dos três consangüíneos conseguiu cumprir.
Sim, triste. Mas, ao mesmo tempo, maravilhoso…
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.