texto por Marcelo Costa
Finalmente consegui dar play em “Variações”, cinebiografia caprichada de João Maia sobre o genial ícone pop português António Variações – o DVD foi presente do Pedro Salgado – obrigado, querido amigo.
No Scream & Yell há texto sobre o filme escrito por Renan Guerra e uma playlist comentada caprichada do Bruno Capelas na série Roque de Casa (que ainda harmonizou Variações com Lady Macbeth em sua newsletter “Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais“).
Pensando nisso tudo, me lembrei de algo: em um dos meus textos favoritos da vida, “Belas canções sob o céu da Califórnia”, Ana Maria Bahiana recomenda “a qualquer um – de 16, 21, 30, 45, 55 anos – que, ao menos uma vez por semana, escute algo que jamais pensaria escutar. E, certamente, algo que fuja dos padrões daquilo que as gravadoras determinaram ser ‘apropriado’ para sua faixa etária – um ouvinte de 16 anos tem tanto a se beneficiar com uma audição de ‘A Nod Is as Good as a Wink’, dos Faces, quanto um de 55 do disco do Kula Shaker’, cravava ela em 1996.
Daí que estou aqui cantando mentalmente “Anjinho da Guarda” enquanto escrevo e pensando que preciso colocar em prática a ideia de criar um “Desafio Scream & Yell” nos moldes do especialíssimo “Desafio Bookster“, convidando vocês a, quinzenalmente, “descobrir” um disco “novo” ouvindo com atenção da primeira até a última faixa. É dar play e deixar tentar ser arrebatado (a).
Que tal? Se sim, como teste ou um programa piloto, como seja, oiçam António Variações! “Anjo da Guarda”, seu primeiro disco, lançado há exatos 40 anos (1983), está disponível em todas as plataformas (Youtube e Spotify incluse). Comecem com a ambientação climática (um ótimo teste, aliás) de “Povo que Lavas no Rio”, versão de Variações para uma de suas maiores influências, Amália Rodrigues, um fado com letra do poeta Pedro Homem de Mello que não está presente no álbum original – foi lançado como lado b do compacto “Estou Além”, de 1982.
“Anjo da Guarda”, o disco, é realmente aberto com um dos clássicos do repertório do barbeiro poeta, o synth pop totalmente oitentista “…O corpo é que paga” que avisa:
“Quando a cabeça não tem juízo
Quando te esforças
Mais do que é preciso
O corpo é que paga
O corpo é que paga
Quando a cabeça está convencida
De que ela é a oitava maravilha
O corpo é que sofre
O corpo é que sofre”
Um clássico.
A alternância de sonoridade é marcante no álbum, o que torna o nome “Variações” perfeito. Há pop, rock, blues e fado. A batida mântrica de “Visões-Ficções (Nostradamus)” traz António avisando “Não vos quis impressionar” enquanto a condução pop marca “Quando Fala Um Português”, sucesso radiofônico. A balada não balada “Sempre Ausente” fechava o lado A do vinil.
O lado b traz outro hit do álbum, “É P’rá Amanhã…”, mas o que impressiona mesmo é a batida new wave com guitarradas de “Onda Morna”, que ainda traz um refrão forte. A faixa título (e um dos momentos bacanas do filme) pode grudar na sua memória com seu jogo de palavras infalível (“Eu tenho um anjo, anjo da guarda, que me protege de noite e dia (…) Eu tenho um guarda, que é um anjo, que me protege de noite e dia”).
Para o final do disco, mais uma faixa notadamente new wave com teclados em destaque, “Estou Além”, e a canção de encerramento, “Voz-Amália-De-Nós”, uma homenagem à Amália Rodrigues, à quem o disco é dedicado (“À Amália que sempre me deu e fez sentir a importância duma verdadeira identidade”).
António Variações lançaria ainda “Dar & Receber”, seu segundo álbum (que traz outro clássico do autor, “Canção De Engate”), em 1984, mas faleceria aos 39 anos em junho do mesmo ano sendo uma das primeiras vítimas famosas do HIV no país – ainda que, devido ao estigma do vírus e ao atraso do pensamento da sociedade da época, a doença nunca tenha sido confirmada oficialmente como responsável por sua morte.
Variações se tornou um ícone da música portuguesa e muitos de seus escritos, inéditos, foram musicados posteriormente, com homenagens pontuais ressurgindo aqui e ali (no Brasil, “Canção do Engate” foi regravada por Filipe Catto, e o Deolinda, uma das bandas amadas aqui em casa, gravou a bonita “As Canções Que Tu Farias” em seu último álbum de estúdio, “Outras Histórias”, de 2016).
Ouça “Anjo da Guarda” do começo ao fim! E comentem (aqui ou no iG, sinta-se em casa).
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
Grande Variações! “Entre Braga e Nova Iorque” há o mais criativo e, ao mesmo tempo, tradicional da música de Portugal.