entrevista por Marcela Güther
Uma catarse familiar. Assim pode ser definido o romance “Doze Dias” (188 p.), de Tiago Feijó, lançado em 2023 pela Editora Penalux, após colecionar prêmios em Portugal: a obra faturou o Prêmio Manuel Teixeira Gomes de Literatura 2021, pela qual ganhou edição portuguesa, e foi finalista do Prêmio Leya do mesmo ano. Por meio da escrita poética, valendo-se de imagens e símbolos, o autor narra o reencontro entre Raul e Antônio, pai e filho que têm uma relação distante e estremecida, a qual precisa se reconfigurar justamente quando a saúde do pai se encontra debilitada. Os doze dias do título simbolizam o período em que ocorre essa catarse.
Narrado em terceira pessoa, o romance é guiado por capítulos que descrevem cada um dos doze dias vividos no hospital, em estrutura não linear. Após 15 anos de distância, quebrada apenas por uma ligação anual de Raul no dia do aniversário do filho, uma manhã o pai quebra o silêncio ao acordar com uma estranha dor que o impede de se levantar da cama. Morador da cidade de São Paulo, Antônio empreende a viagem de retorno a Lorena, cenário de sua infância, com o intuito de levar o pai ao hospital e poder retornar o quanto antes à sua rotina na capital. Porém, a situação do pai se revela grave e durante doze dias os dois permanecem juntos. Na epígrafe da obra, Feijó recupera Jorge Luis Borges: “eu não falo de vingança nem de perdão, o esquecimento é a única vingança e o único perdão”.
Este é o terceiro livro do escritor e professor Tiago Feijó, que tem uma carreira laureada. Formado em Letras Clássicas pela Unesp, em 2014 conquistou o prêmio Ideal Clube de Literatura, com o livro de contos “Insolitudes”, com o qual também venceu o Prêmio Bunkyo de Literatura 2016, como “melhor do ano”. Com seu segundo livro, “Diário da casa arruinada”, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018. Em 2021, venceu, pela segunda vez, o Prêmio Cidade de Manaus 2021, na categoria contos, com título a ser publicado em 2023. Tem textos publicados em diversas antologias, revistas e blogs de literatura. Acompanhe abaixo a conversa com Tiago.
O que motivou “Doze dias”? Como foi o processo de escrita?
Em dezembro de 2015, passei doze dias com meu pai num hospital até o seu falecimento. Essa experiência certamente foi a gênese da história, mas não é um livro autoficcional, visto que me utilizei apenas da ideia temática, o resto é ficção. Eu e meu pai sempre tivemos uma ótima relação, muito diferente do que se passa no livro com os dois protagonistas, também eles pai e filho. Obviamente o senhor Raul, a personagem central do livro, tem muitas coisas do meu pai, mas não é ele. Tive que criar para a história um homem menos afetivo, menos amoroso, mais seco e cruel, porém absolutamente ciente dos seus erros. E esse homem não era meu pai. Mas como o enredo da história nasceu daquele acontecimento que vivi com ele, tive que retornar àquele tempo, àqueles dias para revisitar nossas experiências e nossos gestos. E, é claro, esse tipo de viagem por meio da memória e com o intuito de resgatar fatos passados nos fazem aprender sempre um pouco mais sobre aquilo que vivemos. Creio ter aprendido um pouco mais sobre meu pai, e o homem que ele foi, escrevendo essa história. O processo de escrita foi lento, cerca de dois anos. Enquanto ainda estava com meu pai no hospital, comecei a tomar nota de certas coisas que via e ouvia, principalmente sobre terapias e jargões médicos.
Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam?
Penso que o livro faz refletir um pouco sobre temas como redenção, perdão, a capacidade de aceitar os defeitos dos outros, sobre a nossa finitude e limitação. O livro é uma espécie de catarse familiar.
Por que escolher esses temas?
Porque é sobre esses temas que me debruço na escrita: o Homem e seus medos, seus limites, suas incapacidades e suas fraquezas. É sobre o que vai por dentro do Homem e das suas relações que me proponho a tratar nos meus dois outros livros, e nesse também.
Em sua análise, quais as principais mensagens que podem ser transmitidas pelo livro?
Acredito que “Doze Dias” possui como tema central a incapacidade que temos de nos aproximarmos do outro, de darmos um passo em direção ao outro, de nos colocarmos verdadeiramente no lugar do outro. Esse assunto tem sido muito abordado e discutido, a tal da “empatia” é a palavra que ilumina esta ação tão pouco habitual. Mas mesmo sendo muito utilizada, me pergunto até que ponto somos de fato capazes de ter empatia, de realizá-la honestamente, principalmente quando o outro de quem temos que nos aproximar é um homem reprovável, egoísta e áspero para nós. Quanto maior a divergência entre duas pessoas, mais difícil será de alcançar a capacidade empática. O que procurei fazer foi elevar a potência máxima a divergência dos meus protagonistas e ver se eles seriam capazes de uma qualquer aproximação.
Quais são as suas principais influências literárias? E que livros influenciaram diretamente a obra?
Minhas principais influências são Manuel Bandeira, Raduan Nassar, Adélia Prado, Jorge Luís Borges, António Lobo Antunes, Ruth Guimarães, João Guimarães Rosa, Marcelo Labes, Cristina Judar (influências do momento). Influenciaram diretamente meu livro as obras “O filho eterno”, de Cristóvão Tezza, “Enquanto agonizo”, de William Faulkner, “Jogo da amarelinha”, de Julio Cortázar e “Lavoura arcaica”, de Raduan Nassar.
Como a bagagem dos livros anteriores que você escreveu ajudou na construção da história?
Penso que meus dois livros anteriores foram etapas e processos pelos quais tive que passar para alcançar uma escrita mais madura, uma escrita que amadureceu e continuará amadurecendo, assim espero. Escrever para mim é sempre isto: ir se conhecendo à ponta do lápis, ir se vasculhando pouco a pouco até se deparar com o cerne das questões que mais nos tocam. Todos os livros que escrevemos são necessários e fundamentais para construir o caminho da nossa Literatura.
O que significou para você a conquista do Prêmio Manuel Teixeira Gomes de Literatura com a obra?
Fiquei muito feliz e surpreso. Feliz porque não é fácil ganhar um prêmio literário, seja ele qual for; surpreso porque me pareceu, desde a inscrição, que a língua portuguesa, na sua variante brasileira, poderia não agradar os jurados lusitanos. Minha linguagem explora o léxico e a sintaxe do português, decidindo por escolhas não tão simples e rigorosas. Essa característica me pareceu um ponto negativo diante do júri português. Mas tenho pra mim que gostaram do que leram.
Você escreve desde quando? Como começou a escrever?
Comecei a escrever por volta dos 15 anos. Como lia muito, logo me surgiu a vontade de escrever, de criar também aqueles mundos nos quais eu vivia. Naquela época eu trabalhava numa imobiliária e passava a maior parte do dia sem fazer nada. Comecei a escrever num caderno de escola e não parei mais.
Como você definiria seu estilo de escrita?
A contar pelo que já disseram, penso ter uma escrita poética, com a utilização de muitas imagens e símbolos. Percebe-se no texto um trabalho excessivo com a linguagem, uma tentativa de narrar o velho com uma nova roupagem, uma nova linguagem. Penso me inclinar também sobre o experimentalismo, principalmente no que diz respeito à estrutura desse livro.
Falando nisso, por que você optou por contar a história por meio de uma estrutura não linear?
Optei pela estrutura não linear, desconstruída e labiríntica porque vislumbrei que ela representava o caos profundo em que as duas personagens principais se afundam nestes doze dias. A estrutura narrativa escolhida para um livro é um elemento significativo muito importante para história, e deve de certa maneira representá-la. Eu próprio, quando comecei a escrever o livro dois anos depois da experiência com meu pai, tive dificuldade de me recordar dos dias exatos em que certos fatos aconteceram, esse tipo de sobrevivência hospitalar tende a perturbar a ordem cronológica dos acontecimentos e dos sentimentos vividos.
Como é o seu processo de escrita? Você tem algum ritual de preparação? Tem alguma meta diária de escrita?
Escrevo pela manhã, é a primeira coisa que faço. Às vezes, quando a caneta emperra, leio alguma coisa no intuito de destravar. Gosto também de escrever num lugar isolado, onde não possa ser atrapalhado ou interrompido. Geralmente utilizo bibliotecas. Sou adepto de escrever um pouquinho por dia, uma página por dia já seria ótimo, um livro de 365 páginas por ano. Mas, claro, isso não acontece comigo.
Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?
Atualmente, estou escrevendo um novo romance, uma experiência diferente daquilo que já fiz, um livro mais especificamente político, que dialoga mais com o nosso tempo, com as nossas atuais crises e mazelas. Meus livros até então nunca tocaram tanto em assuntos e discussões que estão na ordem do dia. Não escrevi livros engajados, apesar de que todos eles possuem uma dose de política, afinal o homem é um ser político em todas as esferas da sua vida. O próximo livro promete um mergulho nos principais assuntos que estamos debatendo hoje. E não sei ao certo quando ele será lançado. Mas tenho também um livro de contos pronto, vencedor do Prêmio Cidade de Manaus 2021, que pode vir antes desse novo romance.
– Marcela Güther é jornalista, produtora de conteúdo, assessora de imprensa e mediadora do Leia Mulheres.