entrevista por Bruno Lisboa
Fruto de uma geração que soube transformar o seu fazer artístico num ato de resistência cultural, Sara Não Tem Nome debutou com um álbum elogiado, “Ômega III” (2015), deixando em evidência marcas que até hoje definem o seu trabalho ao unir letras agridoces (por vezes irônicas) sobre o cotidiano com melodias indie carregadas de experimentalismo.
De lá pra cá, Sara lançou singles como “Geografia” (2016), “Agora” (2020) e “Exausta” (2021). Em outubro do ano passado saiu o single “Cidadão de Bens” que serviu como prévia para o seu segundo disco. Lançado em janeiro, “A Situação” (2023) exibe maturidade sonora ao trazer mais camadas ao seu universo particular. O bom uso de cordas e metais em faixas como “Pare”, “Ponto Final” e “Dejà Vú” são bons exemplos de como a sua inquietude musical alcançaram bons resultados.
Ambicioso em sua temática, “A Situação” busca retratar o Brasil contemporâneo, dominado pelo conservadorismo, pelo medo, angústia, mas que, ainda sim, busca nas artes inspiração para seguir em frente e em luta constante. Na entrevista abaixo, Sara fala sobre suas origens musicais, o processo de construção do novo álbum, ambições artísticas, o papel da arte na sociedade, o apoio do selo Natura Musical, o mercado fonográfico na atualidade, as primeiras apresentações da nova turnê, planos futuros e mais!
Uma pergunta que tenho hábito de fazer diz respeito ao período de formação artística. Nesse sentido, como se deu o início da sua relação com o universo da música (ou das artes em si)?
Desde criança sempre me interessei por arte. Quando tinha uns cinco ou seis anos já inventava músicas. Tenho gravada em uma fita K7 uma dessas músicas e quero colocá-la em um futuro álbum. Meu pai sempre gostou de desenhar e me dava revistas para colorir e me deu um tecladinho de brinquedo. Eu gostava de ver seus cadernos de desenho e escutá-lo tocando violão. Aos 11 anos, participei de um concurso de poesia e recebi uma menção honrosa. Por volta dos 14 anos, comecei a tocar violão e fazer minhas próprias músicas, escrever o que eu sentia e dar vida às melodias que tocavam na minha cabeça. Nessa mesma época eu já fazia fotografias, vídeos e autorretratos com um celular velho. Eu sinto que foi a arte que me escolheu e não eu que a escolhi. Criar é algo natural na minha vida, faz parte do meu modo de existir e de me relacionar com o mundo.
Cerca de sete anos separam “A Situação” de “Ômega III”, seu primeiro álbum de estúdio. Num exercício inevitável de comparação, seu disco mais recente soa como um caminho natural de evolução sonora no qual você segue apostando em letras agridoces / cômicas alinhadas a uma sonoridade diversificada, rica em camadas e instrumentações. Dito isso, como foi o processo de composição e gravação do álbum? E ainda: se a arte é (ou pode ser) especular ao seu tempo quais as intenções você alimentou com “A Situação”?
O processo de criação, produção, gravação e finalização do álbum durou vários anos. Em 2016, depois do golpe contra a ex-presidente Dilma, fiz a música “Dèjá vu”, que iniciou o processo de construção do álbum. Em 2019, fui aprovada no edital da Natura Musical para produzir e lançar o álbum “A Situação”. Com a pandemia, acabei fazendo novas músicas e resgatando algumas outras antigas que começaram a fazer sentido no contexto atual. Devido ao distanciamento social e outras dificuldades decorrentes desse período, o processo de produção do álbum foi se alongando. O álbum foi gravado em diversos lugares, em Belo Horizonte, gravamos na minha casa – Quarto Intergaláctico, nos estúdios Frango no Bafo, U-ninho e Cais. Em São Paulo, gravamos na Garagita, Fauhaus, Sugar Kane Áudio e Anti estúdio. Aprendi muito durante esse processo e pude contar com profissionais incríveis, como a Alejandra Luciani, que assinou a mixagem e a masterização e participou de várias gravações como engenheira de áudio. Meus amigos de longa data, Desirée Marantes e Victor Galvão que fizeram a assistência de produção musical. Meu amigo e irmão de consideração, Randolpho Lamonier, que assinou a capa do álbum e canta na faixa “Parque Industrial”. Meu companheiro, Pedro Veneroso, também foi uma pessoa essencial nesse processo, atuando em várias frentes do projeto, como a produção executiva e o desenvolvimento do site. Conseguimos finalizar o álbum em 2022 e lançamos no início de 2023. No decorrer desses anos, fui percebendo o álbum como uma espécie de filme, dividido por capítulos que narram os acontecimentos marcantes na sociedade brasileira e no mundo, como por exemplo, a pandemia, a ascensão de regimes autoritários, o retorno do Brasil ao mapa da fome, a perda de direitos trabalhistas, crimes ambientais, entre outras questões que considero serem de extrema importância e urgência. Meu maior interesse com esse trabalho é trazer reflexões sobre tudo que me atravessou durante esse período de muita angústia, tensão, desalento, medo, raiva e outras emoções densas e difíceis de lidar. Em várias músicas, utilizo do deboche, da ironia e do sarcasmo, como uma forma de falar de assuntos espinhosos e polêmicos, trazendo humor ácido e por vezes absurdo, para tratar de questões dolorosas e complexas.
Falar sobre política, aliás, é uma marca do seu trabalho desde a sua gênese. Só que você o faz de uma maneira que é, por vezes, carregada de ironia. Nesse sentido, como se deu a sua aproximação / interesse por essa temática? Qual a importância de fazer do seu trabalho um instrumento de reflexão e/ou mobilização social?
Penso que a arte é uma importante ferramenta para mudanças sociais. Várias obras que tive acesso ao decorrer da minha vida – músicas, filmes, peças de teatro, exposições, foram essenciais para minha formação. A minha música expressa muito do eu sinto e percebo do mundo, sendo uma forma de compartilhar com os outros tudo o que me atravessa. Acredito que ela se comunica através da minha sensibilidade para perceber e expressar coisas estranhas, bizarras, incômodas e outros assuntos que não são tão simples de serem retratados nas músicas em geral. Gosto de jogar luz ao que não está sendo visto ou falado. Como vários artistas me influenciaram com suas obras, a pensar em outras possibilidades de existência no mundo, me vejo no lugar de também influenciar as pessoas com o que crio, com o que acho relevante de ser dito e mostrado.
“A Situação” é um trabalho que teve a chancela e o apoio da Natura, que há bastante tempo tem patrocinado diversas iniciativas culturais. Como se deu essa aproximação e qual a contrapartida oferecida pela marca?
Quando enviei a proposta de gravação e lançamento de “A Situação” não tinha muita esperança que ele fosse aprovado. Por ser um trabalho muito político, pensei que talvez fosse um problema. Fiquei muito contente quando recebi o resultado de que tinha sido aprovado. A equipe da Natura Musical me apoiou durante todo o processo, principalmente a Raquel Ferraz, que foi super compreensiva e atenciosa, me orientando e ajudando a entender os procedimentos e demandas que eu tive que seguir. Como eu nunca tinha aprovado um projeto deste tipo, tive que aprender muita coisa. Foi um processo importante para profissionalizar meu trabalho.
Você faz parte de uma geração cuja relação com música foi mediada pela MTV. Nos últimos anos vivemos tempos revolucionários, para o bem e/ou para mal, no que diz respeito a como público estabelece conexões musicais com os artistas via streaming. Como você vê a atualidade com tantas mudanças promovidas pelo mercado fonográfico?
Costumo brincar com alguns amigos da minha geração, dizendo que somos “órfãos da MTV”. Cresci vendo videoclipes e ouvindo músicas que me formaram, que influenciaram muito minha forma de pensar e agir. Quando era adolescente, sonhava em tocar na MTV, ter um clipe meu passando na programação. Infelizmente, muita coisa mudou nos últimos tempos e não foi do jeito que eu gostaria. Sinto que é muito difícil fazer música independente no Brasil, principalmente se o trabalho for ousado, com muita experimentação estética. O que vemos e temos mais acesso são fórmulas sendo repetidas até o cansaço e obras que causam pouco questionamento, com pouca autenticidade. Muitos artistas acabam virando um produto, tendo que seguir uma tendência para fazerem parte do mercado. Acaba que muitas vezes é mais sobre números do que sobre arte. Fico pensando em como criar sem ser tão influenciada por todas essas demandas, seguindo o que acredito e não o que o mercado dita. Percebo que essas questões acabam virando assunto no meu trabalho. Acabo trazendo essas reflexões de forma irônica e sarcástica, pensando como podemos romper com essa lógica, não ficando reféns do funcionamento desse mercado.
O disco é cheio de participações reunindo um time diversificado de artistas como Bernardo Bauer, Luiza Rozza, Tantão e Randolpho Lamonier. Como se deu a seleção de convidados e quais contribuições os mesmos trouxeram para o resultado final?
Todos os artistas que convidei para participar do álbum, são pessoas que admiro muito e que de alguma forma me influenciaram e me sensibilizam. O Randolpho Lamonier é um dos meus melhores amigos, o considero como irmão. Somos muito próximos e estamos sempre participando e acompanhando os processos um do outro. Foi uma alegria poder cantar junto com ele a música “Parque Industrial”, pois ela fala sobre uma realidade que atravessa a nossa história de vida. Para além da participação cantando, ele também desenvolveu os visualizers e a arte gráfica do álbum junto do Victor Galvão, outro parceiro que tem colaborado em vários projetos.
No dia que conheci o Bernardo Bauer, nos identificamos logo de cara e fizemos uma música. Fiquei muito contente com o convite que ele me fez para cantar na faixa “Coragem” do seu álbum “Pássaro-cão”. Gosto muito do trabalho dele, me toca profundamente. Nos últimos anos, compomos algumas músicas junto de outros amigos e logo vamos lançar. Nossa forma de criar tem uma sintonia muito bonita. Convidei ele para cantar “Vazio” por sentir que a música está diretamente ligada à sua história de vida e as temáticas que ele retrata em suas músicas.
Conheci a Luiza Rozza durante a pandemia. Fiquei encantada quando assisti uma session dela cantando e tocando kalimba. Descobri que ela é de Belo Horizonte e logo começamos a conversar e combinar de fazer algo juntas. De lá pra cá, começamos várias parcerias, ela gravou no meu álbum, tocou no show de lançamento, lançamos duas músicas dela pelo meu selo Grão Pixel e estamos planejando várias parcerias futuras.
Conheci o trabalho do Tantão através dos meus amigos Anne e Gabraz. Eles fizeram dois filmes sobre a vida e a obra do Tantão, o “Eu Sou o Rio” e “Diários de Uma Paisagem”. Achei incrível conhecer as músicas, pinturas e performances que o Tantão cria. Vi um show dele na Autêntica e pirei. O show era tão pesado que a casa de show não aguentou, a energia ficou caindo e não conseguiram terminar o show. Me lembro que teve uma hora que o Tantão estava cantando: “Lúcifer, pai de todos” e a luz caiu. Foi bem sinistra aquela situação. Eu fiquei atônita, achando aquele um dos shows mais doidos que eu já vi. Fiquei pensando em um dia convidá-lo para fazer algo juntos. Quando estava desenvolvendo a versão de “Agora” para o álbum, me veio a voz do Tantão na música. Pensei que o contraste entre minha voz doce e de certa forma frágil com a voz densa e grave do Tantão, trariam uma dinâmica muito interessante para a música.
Recentemente você deu início a turnê do novo disco em BH, numa apresentação que foi bastante elogiada (assista no fim da entrevista). Como você encara as performances ao vivo? Como se dá o processo de transição de levar para os palcos o que foi idealizado em estúdio?
Fiquei muito contente com o show de lançamento que fizemos em Belo Horizonte. Foi uma plateia cheia de pessoas queridas, que acompanham meu trabalho desde o começo. Gosto muito do momento do show, é uma experiência muito intensa, são muitas emoções ao mesmo tempo. Dividir esse momento com tantas pessoas, é algo muito poderoso. Foi muito forte quando sai do palco e várias pessoas me relataram que se emocionaram muito com o show, com as músicas, as projeções, os arranjos. Para mim, essa troca é muito importante para continuar criando, para continuar lutando para produzir arte, o que muitas vezes é algo muito difícil dentro do contexto que vivemos. Nesse show de lançamento, conseguimos levar grande parte do álbum de estúdio para o palco, pois contamos com sete artistas no palco, técnicos de som, iluminação, projeção, etc. Tenho pensado em como viabilizar outros formatos de apresentação sem perder a força das músicas, adaptando a experiência do álbum para outros locais com estruturas menores e para apresentações em espaços mais intimistas. Penso que é um exercício de adaptação da obra para cada contexto, para cada situação. Me interessa muito entender os desdobramentos que um trabalho pode ter, sendo apresentado de forma mais complexa ou mais simples. Acho que é um processo muito rico entender como fazer a mensagem chegar da melhor maneira possível em lugares diferentes, com suas possibilidades e demandas específicas.
Por fim, com um disco novo debaixo dos braços quais são os planos futuros
Tenho vários planos para o álbum. Estamos com o trabalho de divulgação do álbum para que chegue em novos ouvidos. Em março vou tocar em Belém e em Macapá. Vamos lançar também uma session em que estou tocando “Nós” em uma paisagem linda de uma viagem que fiz para Portugal. Em abril vamos lançar um faixa a faixa, contando detalhes sobre o processo de criação e produção das músicas. Vamos lançar visualizers das músicas e um site com vários materiais e diários do processo de gravação do álbum.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Randolpho Lamonier e Victor Galvão