textos de Marcelo Costa
“Sra. Harris Vai a Paris”, de Anthony Fabian (2022)
Mrs. Harris Goes to Paris
1957, Londres. Ada Harris é uma diarista britânica sonhadora, que espera que o marido retorne da guerra (12 anos depois dela ter terminado) e faz o possível para melhorar o dia de todos ao seu redor. Sempre com um sorriso no rosto, Ada têm sua rotina alterada quando se depara com um vestido Dior na casa de uma cliente, que insiste em atrasar seu pagamento semanal, mas pagou 500 libras (em 1957!) para trazer para casa o vestido da Maison francesa (bem, talvez não tenha pago…). Completamente fascinada, Ada coloca como meta em sua vida juntar dinheiro para comprar um vestido Dior para si mesma. Começa então a saga encantadora de “Mrs. Harris Goes to Paris”, indicado ao Oscar de Melhor Figurino, mas favorito disparado ao Oscar de Conto de Fadas da temporada! Mrs. Harris (Lesley Manville, excelente) passará poucas e boas para juntar o dinheiro necessário para o vestido e partir para a Cidade Suja, ops, a Cidade Luz em meio a uma greve de lixeiros, atrás de seu sonho. O que a encantadora senhora não conta é com a malfadada divisão de classes socias, que no mundo da moda parisiense pode ser representada pela ideia de que a alta costura foi feita para as classes mais altas, pois se todas as mulheres de todas as classes sociais pudessem comprar um vestido Dior, que diferencial ele teria, que status ele proporcionaria? Mrs. Harris, no entanto, não vai desistir fácil de seus sonhos, nem que precise enfrentar a bruxa malvada Claudine Colbert (Isabelle Hupert), diretora da Maison. Com seu encanto, Ada terá apoio de quase toda equipe Dior, do contador André (Lucas Bravo, que “no futuro” largará essa vida de números para se dedicar a culinária em “Emily in Paris”) a bela modelo (luso-brasileira) Natasha (Alda Batista) até a auxiliar Marguerite (Roxane Duran, que debutou no cinema em “A Fita Branca”, de Michael Haneke). Com muita leveza, espetadas sutis, atuações corretas e figurino deslumbrante, “Mrs. Harris Goes to Paris” merece o adjetivo bonitinho e bobinho, mas tem potencial para colocar um sorriso no seu rosto. Colabore, hein.
Nota: 6
“Eo”, de Jerzy Skolimowski (2022)
Na página 79 de “O Idiota”, de Dostoiévski, lançado em 1869, o Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin conta como se afeiçoou aos burricos porque eles têm bom coração. Esse trecho inspirou Robert Bresson a escrever e filmar em 1966 “Au Hasard Balthazar” (“Balthazar ao Acaso”), filme que acompanha o burrico Balthazar de seu nascimento até sua morte numa vida de abuso e sofrimento em que o espectador não apenas se vitimiza acompanhando o olhar triste do animal, mas também se coloca no lugar dele. Obra prima que apareceu em 25º lugar na lista decana de melhores filmes de todos os tempos da Sight & Sound safra 2022 (e que está disponível no Mubi), “Au Hasard Balthazar” é a inspiração para “Eo” (“Io” em polonês), filme que representa a Polônia na categoria de Melhor Filme Estrangeiro após ter ganho o Prêmio do Júri no Festival de Cannes. Eo é o burrico que muito bem poderia ser um descendente da família Balthazar. Assim que a projeção começa, percebemos que ele “trabalha” em um circo, afeiçoado a uma bailarina que o trata com afeto. Uma nova lei, no entanto, proíbe o uso de animais em circos, e começa então a epopeia de Eo pelo mundão velho sem porteira, de uma maneira parecida com a de Balthazar, mas que na verdade não só atualiza a narrativa para a Europa 60 anos depois como coloca diversas questões em pauta, desde o ativismo de fachada (ninguém acompanha o destino dos animais após a libertação via lei) até a violência. Skolimowski, que assina o roteiro com Ewa Piaskowska, acaricia com uma mão e bate com força com a outra na sequência, de forma que a calmaria irá sempre preceder a tempestade (eis a humanidade ainda – e em muitos aspectos mais – desumana 60 anos depois) num filme melancólico, aterrador e devidamente aconchegado numa temporada deja vu marcada por aparentemente “nada de novo no front”. Isso não desmerece “Eo”, que tem particularidades que o diferenciam de “Au Hasard Balthazar” – sobretudo a defesa da causa animal – e é uma experiência interessantíssima, principalmente na sala de cinema. Prepare-se para nunca mais comer salame…
Nota: 8
“Entre Mulheres”, de Sarah Polley (2022)
Women Talking
Notícia da BBC: “Em Manitoba, uma colônia menonita na Bolívia cujos moradores rejeitam a modernidade, um grupo de homens foi preso em 2009. Posteriormente, eles foram condenados por estupro e abuso sexual de 151 mulheres e meninas – incluindo crianças pequenas – dentro dessa pequena comunidade cristã” em que as mulheres não são ensinadas a ler e escrever, passando o dia cozinhando, lavando, limpando e seguindo as rotinas impostas pelos líderes da colônia enquanto homens e meninos trabalham nos campos. Sim, 2009. Esse caso real inspirou a escritora Miriam Toews a escrever “Women Talking”, livro que propõe “um ato de imaginação feminina” à maneira como a colônia escolhe lidar com esses ataques: os homens da comunidade decidiram ir até a cidade e pagar a fiança dos estupradores dando 48 horas para que as mulheres os perdoassem. “Se não os perdoássemos eles nos expulsariam da colônia e não entraríamos no Reino dos Céus”, conta Outje (Kate Hallett), que foi abusada e está escrevendo um relato para o filho ainda não nascido de Ona (Rooney Mara), grávida de um dos estupradores. As duas se juntam a outras mulheres da comunidade para decidir entre: 1) Não fazer nada 2) Ficar e Lutar; 3) Partir. O que se segue são 100 minutos de… “mulheres falando” (o título original é perfeito), e ainda que o roteiro tenha falhas e de que a imaginação peque em verossimilhança (para um grupo de pessoas sem estudo ou conhecimento vivendo totalmente isolado da sociedade, tanto a discussão quanto as palavras são muito acima do vocabulário esperado), o resultado final de “Entre Mulheres” é poderoso, justificando sua indicação em Melhor Filme e Roteiro Adaptado – Polley e elenco são exemplares em não deixar que a narrativa descambe para um dramalhão (o que seria totalmente aceitável) e se posicione mais como reflexão e contestação. São mulheres que foram ensinadas a acreditar na fé, em Deus, na bondade humana, e que foram vítimas de monstros que se apoiam na religião e em tradições seculares para manterem as coisas como elas sempre foram. Um dos filmes com a maior quantidade de “gatilhos” dessa edição do Oscar, “Entre Mulheres” é para ver, ouvir e ensinar a agir.
Nota: 8.5
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.