texto por Renan Guerra
fotos por Fernando Yokota
a foto que abre o texto é da Flashbang
O Festival GRLS! nasceu com um propósito: ser um espaço de celebração feminina, que colocasse as mulheres em primeiro plano. Sua primeira edição ficou marcada por ser o último evento antes do lockdown causado pelo Coronavírus e, de lá pra cá, o público que foi ao primeiro evento viveu de memórias. Inclusive artistas da primeira edição, como Kylie Minogue e algumas das integrantes do Little Mix, falaram em diferentes momentos sobre sua experiência nesse derradeiro show. Enfim, memórias foram feitas e expectativas foram criadas.
Muito se especulou sobre quais seriam os headliners dessa segunda edição, inclusive até um boato de uma possível vinda de Christina Aguilera chegou a circular, o que auxiliou na pré-venda dos ingressos e no aumento das expectativas. De todo modo, o line-up final decepcionou uma grande parcela do público. Os headliners principais foram definidos como a estadunidense Tinashe e a brasileira Sandy, e nas linhas abaixo uma seara de nomes diversos. Entre as atrações internacionais, Jojo (não a Toddynho, mas sim a cantora americana conhecida pelo hit “Too Little Too Late”), a cantora de reggaeton Mariah Angeliq e a atração indie pop Blu DeTiger; entre os brasileiros nomes como Alcione, Duda Beat, Margareth Menezes, Manu Gavassi, AnaVitória, Majur e Lexa, além de um segundo palco patrocinado pela Heineken que trouxe shows de Negra Li e Lah Lahn, entre outros.
A falta de grandes nomes como headliners desanimou uma parcela do público e a falta de unidade do line-up também não ajudou. Vamos explicar: muitos dos artistas escolhidos têm públicos bem definidos, como AnaVitória, Sandy, Alcione, Tinashe e Jojo, porém todos esses nomes juntos em um line-up pareciam uma salada mista meio confusa e que não chamavam atenção frente ao valor dos ingressos, que iam de 400 a 700 reais. Essa escalação de artistas mais uma vez esbarra em uma questão que já havia sido tópico na primeira edição do GRLS!: quais seriam as artistas headliners que poderiam levar um público feminino para o festival? Neste ano, novamente, a maioria do público do evento era formada por homens gays e isso é completamente compreensível, visto que muitas dessas artistas pop escolhidas têm um diálogo fundamental com a comunidade LGBTQIA+.
São equações complexas para um festival: como se manter rentável, trazer um público diverso e ainda assim conseguir construir um line-up coeso? Não temos essa resposta de forma tão clara e o GRLS! se mostra como uma possibilidade de pensar nisso. Nesse sentido, outra falta desse ano foi a escolha de virtualizar as palestras e rodas de conversa. Na primeira edição, esse foi um espaço que reuniu um importante público feminino e que criou debates interessantes e diálogos enriquecedores. Neste ano, o GRLS! Talks foi para o YouTube, com curadoria e mediação de Ju Ferraz. Ao acessarmos os vídeos no dia dessa publicação, as visualizações das discussões estavam todas em torno dos 100 views, o que é uma pena.
Depois de tanto tempo de lives, transmissões on-line e todas essas demandas ocasionadas pela Covid, o fato é que o público está muito mais interessado em encontrar pessoas de modo real e ao vivo, para que essas trocas sejam mais enriquecedoras – a transmissão e a gravação posterior é um ponto importante para que mais gente acesse esse conteúdo, mas ter as conversas com o público gera outro tipo de contato que se perdeu esse ano. Por outro lado, como ponto positivo, é fundamental destacar a existência do Espaço Conexões, dedicado à divulgação de seis instituições fruto do empreendedorismo feminino: Beaba, Instituto Plano de Menina, Livre de Assédio, Movimento Black Money, Orientavida, Rede Mulher Empreendedora; bem como a área da Feirinha, que contou com a presença de negócios liderados por mulheres: Ana Santiago Moda Afro, Aya Pitaya, JAZZ, Linus, Livraria Africanidades, Pinga e Pop Plus.
Enfim, são inúmeras questões que nos fazem refletir sobre o retorno dos eventos, como produzir festivais em meio a essa enxurrada de shows que estamos vivendo e como movimentar o público em torno dessas causas que são caras para os realizadores. Quando falamos de questões logísticas, o Festival GRLS! pode ainda assim ser considerado um sucesso. Nessa segunda edição o evento saiu do Memorial da América Latina e foi para o Centro Esportivo Tietê, um espaço que já havia sido utilizado pelo Popload Festival em 2022 (os dois festivais estão debaixo do guarda-chuva Popload dentro da T4F). Arborizado, com gramado sintético e um bom espaço para descanso, o local é uma ótima opção para festivais no calor, pois nada mais triste que aquele mormaço de concreto do Memorial. Além disso, a proximidade do local com o metrô e os terminais de ônibus facilitou a chegada e a saída. Destaca-se também a boa organização dos banheiros e a quantidade diminuta de filas. Como ponto negativo, o clássico: os valores surreais para consumo. R$ 18 um copo de chopp (sem outras opções de cerveja) e R$ 15 por um churrasquinho é de chorar.
Enfim, mas vamos falar de música: os dois dias foram marcados por altos e baixos, algo que já era previsto pelo line-up meio confuso do evento. Com shows que foram do ruim ao “divertidinho”, passando por poucos grandes destaques, nós separamos abaixo cinco shows de cada dia. Confira:
Sábado
Margareth Menezes
A atual Ministra da Cultura Margareth Menezes cantou para um público que ainda estava chegando ao evento, no meio da tarde de sábado. Com uma banda bastante coesa, Margareth tem as manhas de tantos anos de carreira e entendeu bem que uma grande parcela daquele público não era o público oficial dela, por isso investiu em um setlist que ia desde seus clássicos mais populares, como “Faraó” e “Dandalunda”, até canções clássicas populares de outros artistas, passando também pelo repertório de Gilberto Gil e Caetano Veloso, compositores que Margareth gravou no disco “Para Gil e Caetano” (2015). Com gritos em coro de “ministra, ministra”, Margareth também aproveitou para reforçar seus discursos em defesa da cultura e dos artistas negros. Foi um show correto, mas que levantou o público, dando aquele clima de after de Carnaval.
Mariah Angeliq
Mariah Angeliq é uma cantora de reggaeton natural dos Estados Unidos, mas de ascendência cubana e porto-riquenha. Cantando em espanhol, seu nome é conhecido no Brasil por suas parcerias ao lado de artistas como Ludmilla (“Socadona”) e Luísa Sonza (“ANACONDA *o* ~~~”). Conhecida pelo epíteto La Tóxica, Angeliq tem um show que trafega entre o caos e a diversão. Acompanhada de um DJ e duas dançarinas, Mariah saía e voltava do palco diversas vezes e ficávamos apenas na companhia do DJ, uma movimentação curiosa para um show tão curto como o de um festival. Além disso, em alguns momentos ela parecia mais atenta em dançar do que cantar e foi meio constrangedor quando ela em alguns momentos pediu para o público cantar junto e pouquíssimas pessoas sabiam suas letras. Enfim, apesar do caos, seu reggaeton é divertido e ainda deu conta de colocar as pessoas para dançar.
Duda Beat
Duda Beat é tipo “arroz de festival”, pois se tornou uma presença constante em inúmeros line-ups nacionais, e essa agenda cheia tem um saldo positivo: o show de Duda Beat está cada vez mais bem amarrado, com a potência de uma grande artista pop. Com repertório baseado essencialmente no seu disco mais recente, “Te amo lá fora” (2021), Duda Beat sabe como mobilizar a plateia e coloca todo mundo para dançar – e mesmo tocando no final da tarde, seu show foi um dos momentos que mobilizou o maior público do primeiro dia. O destaque de seu show foi a apresentação de algumas das versões remix de seu último disco que foram lançadas agora no mês de fevereiro, dentre elas, o momento mais icônico ficou por conta da participação de Laura Diaz, da Teto Preto, na hora de cantar “Meu Pisêro – Teto Preto Remix Explicit”.
Jojo
Jojo é conhecida pela maioria do público pelo seu hit “Too Little, Too Late”, de 2006, mas sua carreira não ficou estagnada no tempo e ela tem um público amplo no Brasil que ansiava pela sua vinda – sua visita anterior ao Brasil tinha sido lá em 2007. Por aqui, ela fez um show que mesclou diferentes momentos de sua carreira, indo desde canções dos recentes “good to know” (2020) e “Mad Love” (2016) até canções vindas direto de seu disco de estreia, “JoJo” (2004). Além de seu repertório original, a artista também arriscou cantar o hit “Envolver”, de Anitta, e mostrou segurança com “Love On The Brain”, de Rihanna. Tudo isso foi feito em um show muito envolvente, de uma artista que parecia estar se divertindo muito no Brasil e que encantou seus fãs. Um show pop muito interessante que mostra que JoJo é bem mais que uma one hit wonder.
Sandy
Sandy é um exemplo muito interessante de como manter uma carreira pop sólida sem precisar de superexposição na mídia e sem a necessidade de aparecer a todo custo, mas, até por isso mesmo, seu universo é bastante fechado em si e no seu público fiel. O GRLS! foi o primeiro festival que Sandy performou em sua carreira solo e isso acabou mostrando seu cuidado em montar um setlist especial para esse dia: ela passeou pelos clássicos de sua carreira solo, resgatou “A Lenda” e “Quando você passa” de sua fase ao lado do irmão Júnior e passou por covers como “All Star”, de Nando Reis, e uma curiosa versão de “Um lugar ao sol”, do Charlie Brown Jr. O show de Sandy é muito coeso, muito correto e ela tem um carisma que chama seu público para perto, mesmo assim sua presença enquanto headliner do primeiro dia é algo dúbio, talvez seu show poderia ser melhor encaixado em um horário mais cedo – ao final da tarde, por exemplo – e funcionaria de uma forma mais sólida.
Domingo
Manu Gavassi
Manu Gavassi lançou recentemente um “Acústico MTV Manu Gavassi Canta Fruto Proibido”, em homenagem à Rita Lee. O projeto é formado por uma banda somente de mulheres e foi esse espetáculo que a artista levou para o palco do GRLS!. Enquanto discurso, faz todo sentido que esse show esteja ali: uma banda de mulheres, um projeto que celebra uma das nossas artistas mais fundamentais, tudo muito certo, tudo muito correto. E aí que está o problema: Rita Lee é uma de nossas artistas mais transgressoras, ela sabe como poucos usar dos espaços para subverter as coisas, e isso é o completo oposto de Manu Gavassi, uma artista toda moldada dentro de um padrão de artistas pop que soam como a coisa mais careta possível. No palco, todas as músicas de Rita Lee parecem não conversar com a voz e a postura de Gavassi, é como se tirasse toda a subversão, a transgressão e deixasse apenas uma embalagem muito bem polida e correta. Enfim, uma chatice sem fim.
Blu DeTiger
A nova-iorquina Blu DeTiger é uma típica representante dos artistas indie pop de sua geração: ela não tem um disco lançado, mas sim uma série de singles, faz um indie pop que gera hits ocasionais em redes sociais como o TikTok e faz um som divertido na mesma medida que esquecível. No meio da tarde de domingo, a artista subiu ao palco com o sol a pino e não fez feio. Canções como “Elevator”, “Cotton Candy Lemonade” e “Blutooth” animaram o público, mas o único momento real em que ela captou grande parte da atenção da plateia foi com um cover de Taylor Swift. Enfim, um show correto, divertidinho, mas inofensivo.
Alcione
Alcione passou por uma cirurgia no ano passado e ficou grande parte do ano entre idas ao hospital, fisioterapia e todos esses tratamentos, por isso mesmo ela fez grande parte de seu show no GRLS! sentadinha em uma cadeira. De todo modo, isso não diminuiu o impacto de seu show: divertida, alegre e esbanjando saúde, Alcione cantou clássicos como “Juízo Final” e “A Loba” enquanto contava histórias sobre sua vida, reclamava da chatice que é fazer fisioterapia e levava seu público às lágrimas – e aqui vamos das pessoas que estavam na plateia até as profissionais que estavam trabalhando no evento. A força da Marrom é uma coisa estrondosa e vê-la ao vivo, aos 75 anos, cantando com um poder descomunal é algo arrebatador e foi um acerto gigante do festival, pois conseguiu unir diferentes públicos em torno de uma diva popular da nossa canção.
Anavitória
A dupla Anavitória é outro “arroz de festival” estando em inúmeros line-ups de festivais nacionais e, assim como falamos no caso de Duda Beat, isso apenas fez bem para que o show das artistas fique cada vez mais redondinho e pronto para esse tipo de evento. Com uma cartela de hits poderosa em mãos, a dupla passou por canções como “Trevo (Tu)”, “Amarelo, azul e branco”, “Pupila” e “Partilhar”, tudo com a sagacidade de quem sabe dominar o palco e se divertir um bocado. As duas meninas sabem cativar seu público e conseguem chamar atenção de quem muitas vezes poderia desdenhar de seu som com um show pop e dançante. Além de suas canções, a surpresa do show foi a entrada de Manu Gavassi para que juntas elas cantassem “Amor & Sexo”, de Rita Lee, e, assim como dito antes, é aquela coisa correta demais, bonitinha demais…
Tinashe
Tinashe é uma artista de carreira sólida no R&B e com um público fiel, mas que nunca teve um turning point em sua carreira e virou uma grande estrela, fato esse que fez com que se questionasse a sua presença como headliner. Tinashe realmente não é uma artista arrasa-quarteirão que lota estádios, mas sua presença fez o público do domingo ser bem maior em números do que o do dia anterior. E no palco a artista mostra que tem todo o je-ne-se-quoi de uma grande artista pop. Nada de bases pré-prontas e aquelas coisas econômicas que muitos artistas têm trazido pro Brasil, pelo contrário, Tinashe trouxe sua banda completa, seu corpo de baile e fez um espetáculo que passou por diferentes fases de sua carreira em um show longo que, mesmo debaixo de chuva forte, manteve seu público animado e dançando. No total foram 28 músicas e, mesmo assim, depois disso Tinashe ainda bateu ponto na boate Zig, na Barra Funda, para uma after party em que cantou mais cinco músicas, inclusive coisas que não estavam no setlist do show oficial. Ela parece ter se divertido um bocado e seus fãs agradeceram muito.
Saldo Final
A segunda edição do Festival GRLS! nos faz refletir sobre o futuro desse evento e como ele se encaminhará daqui pra frente. A venda de ingressos desse ano foi uma batalha e muita gente foi até lá por causa de promoções e até mesmo distribuições gratuitas de entradas, então é preciso entender o que leva o público até esse evento e qual é o público que eles querem atingir. Como levar mais mulheres para o festival? Como deixar esse evento mais diverso e agregar mais gêneros musicais sem que o festival se perca no caos? São questões complexas, mas ficamos na torcida para que o GRLS! consiga reencontrar seu caminho e se mantenha como um evento importante no nosso calendário de eventos musicais.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/