Cinema: Cate Blanchett surge esplendorosa (de novo!) em “Tár”, um filme que mostra que a música é belíssima, já os musicistas…

texto por Marcelo Costa

A maestrina Lydia Tár (que preferiria ser chamada de maestro pois ninguém chama as astronautas mulheres de ‘astronetes’) é uma das 15 EGOT do mundo atual, que é como são conhecidos os ganhadores dos quatro maiores prêmios do entretenimento: Emmy, Grammy, Oscar e Tony – Bob Dylan deve estar por ali se contarmos que além de Oscar e Grammy ele tem um Nobel de Literatura e um Pulitzer. Lydia também guarda semelhanças com Edith Wharton, Woody Allen e Pablo Picasso (e muito provavelmente também com Dylan, ainda que ele tenha conseguido, de alguma forma, se livrar do cancelamento – até o momento – atribuído aos demais), mas estamos, inadvertidamente, colocando a carroça na frente dos bois.

Voltemos então ao início: Lydia Tár é a primeira diretora musical feminina da Filarmônica de Berlim e está, neste momento, no topo do mundo (pop sinfônico) com uma autobiografia pronta para ser lançada e o encerramento de um ciclo de sinfonias de Gustav Mahler prestes a ser concluído com uma gravação ao vivo a ser feita pelo selo de música clássica mais famoso do mundo – que, no entanto, não quer lançar o “álbum” em compact disc ou vinil, apenas no formato digital, uma deliciosa provocação dicotômica e sarcástica (música clássica vs streaming) que pode ser encontrada de diversas maneiras no filme, afinal estamos lidando com um personagem dicotômico e sarcástico, mas, novamente, os bois estão ficando para trás.

Tár vive o auge de sua carreira tendo se especializado em musicologia após estudar a música indígena do Vale Ucayali, na Amazonia peruana, onde viveu cinco anos, e conduzido as cinco maiores orquestras dos Estados Unidos, entre diversos outros feitos. Pupila de Leonard Bernstein (que certa vez disse que 95% da música pop era lixo, mas Brian Wilson estava nos 5% redentores), é possível presenciar (e idolatrar?) Lydia milésimos de segundos antes da tragédia, e a condução de seu corpo até o fundo do poço metafórico – após tantos sinais e avisos – é exemplar devido tanto a mão segura de Todd Field (dos densos “Entre Quatro Paredes” e “Pecados Íntimos”, 2001 e 2006 respectivamente) quanto a atuação esplendorosa e digna de (mais um) Oscar de Cate Blanchett, com certas passagens remetendo levemente a “Elizabeth” e “Blue Jasmine”, que rendeu seu segundo e último Oscar, em 2014.

O diretor Todd Field (que também assina o roteiro) arremessa Lydia como uma astronauta no espaço a segurando por uma corda, que é puxada vagarosamente para a Terra. É possível prever desde o primeiro momento que há algo de podre no reinado da maestrina, mas ela caminha elegantemente com a segurança do poder que tem em mãos desafiando a todos com ironia, sarcasmo e massacre – um aluno da Julliard em uma masterclass (na cena chave do filme) provará do veneno desses cruéis olhos azuis após dizer que não gosta de Bach porque sendo um BIPOC (sigla que abarca negros, indígenas e afrodescendentes) transgênero, a vida misógina de Bach o impede de levar sua música a sério, reacendendo, mais uma vez, a discussão interminável sobre ser ou não possível separar a obra do artista (espere até saber sobre Schopenhauer).

Field continua puxando a corda, o que nos faz pensar se Tár sobreviverá a entrada na atmosfera terrestre. Ela é casada com Sharon (Nina Hoss), a spalla da orquestra de Berlim, e as duas tem uma filha adotada, mas, como todas as pessoas tóxicas, Tár deixa rastros de um processo padrão que pode ser descrito em estágios: ela seduz sua presa (Olga, uma jovem violoncelista russa), depois a torna submissa (papel que no momento cabe a sua assistente Francesca) para, enfim, rejeitá-la (a desesperada Krista vê todas as suas portas fechadas por Tár, e acaba sucumbindo). É um processo maquiavélico que funciona tal qual um relógio (uma nova presa ocupará o lugar de Olga que ocupará o lugar de Francesca que sucumbirá tal qual Krista), a não ser que apareça algum equivalente de Alma (personagem de Vicky Krieps em “Trama Fantasma”) para acabar com essa carnificina “romântica”. Ou que, simplesmente, o mundo (em tempos de #metoo) descubra Tár.

Tão genial, inteligente e apaixonadamente musical quanto narcisista, cruel e escrota, Lydia Tár comerá o pão que ela própria amassou enquanto o roteiro pontuará a cultura do cancelamento e as fake news dos vídeos editados e retirados de contexto tanto quanto a responsabilidade do mentor – indo além de onde “Whiplash” parou. E, sim, não há nenhuma novidade aqui. Num drama com alfinetadas de terror psicológico, Field utiliza o clichê e a obviedade a seu favor usando-os de forma a colocá-los em um pedestal até a cena final, absolutamente brilhante. Nem tudo precisa ser genuíno, original e gratuitamente revolucionário (ainda mais depois de 20 séculos de humanidade). “Tár” é um mais do mesmo grandioso que observa a cegueira causada pela fama e pelo poder advindo dela de maneira direta e sem disfarces, e a consequência derrocada como algo natural, mesmo que nublado por uma sociedade em que, cada vez mais, “ser acusado é o mesmo de ser culpado”. Prepare seu estomago com apenas uma certeza: a música é belíssima. Já os musicistas…

OS FILMES DO OSCAR 2023

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.

One thought on “Cinema: Cate Blanchett surge esplendorosa (de novo!) em “Tár”, um filme que mostra que a música é belíssima, já os musicistas…

  1. Alguns atores deveriam ser hors-concours em premiações, é muito injusto que eles concorram com os demais. A Cate Blanchet é um deles, ela está tão espetacular que é outro nível, mesmo o personagem dela sendo odiável. Que atriz!

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