texto de Renan Guerra
Pensar na trajetória de Beth Carvalho é pensar também na história da música brasileira no século XX e, por isso mesmo, o documentário “Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho” (2023), de Pedro Bronz, acaba se tornando um retrato que vai muito além de sua figura central. Beth Carvalho é como o fio narrativo de uma história que perpassa nomes fundamentais do samba, da cultura popular e da política brasileira.
Considerada a madrinha do samba, Beth foi uma artista aglutinadora, que nunca andou sozinha e sempre fez questão de celebrar aqueles que vieram antes dela e aqueles que viriam depois – e que seriam os seus muitos afilhados. Pensar em um documentário sobre sua figura é algo complexo, porém Pedro Bonz tinha em mãos um arquivo riquíssimo, com imagens captadas pela própria Beth em sua sanha de museóloga; ela própria fala no filme o quanto sua casa tinha virado uma espécie de arquivo e como ela guardava fitas, filmagens, figurinos e outros itens.
Beth era uma pesquisadora atenta do samba e da música brasileira e isso se mostra latente em suas filmagens e em seu olhar para o trabalho de seus colegas. Todo esse material gigantesco de fitas e filmagens é recheado de nomes fundamentais que eram amigos e parceiros da sambista.
“Andança” é um filme construído apenas dessas imagens de arquivo, nada interrompe essa narrativa construída como um quebra-cabeça. São imagens de película, de VHS e de arquivo televisivo, tanto que a sensação geral durante a projeção é que estamos em uma viagem no tempo; só lá para o finalzinho do filme temos algumas poucas imagens de qualidade digital, de resto, é muita fita mofada e itens raros resgatados pela produção do filme.
O acervo principal vem dessas fitas de família, de Beth e Luana Carvalho, e é um material de um valor inestimável. Alguns desses itens raros incluem gravações caseiras de áudio que Beth fazia em suas pesquisas de repertório e nelas ouvimos nomes como Nelson Cavaquinho e Cartola cantando canções então inéditas em primeira mão para Beth. Ouvir Cartola cantando “O Mundo é um Moinho” em primeira mão para a sambista é um momento de beleza sublime.
E esses momentos se repetem inúmeras vezes, pois a história de Beth se confunde com a história do samba. Vemos na tela nomes como Clementina de Jesus, Elizeth Cardoso, Monarca, Almir Guineto, Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Alcione, Dona Zica, Jovelina Pérola Negra, Roberto Ribeiro, entre tantos outros. Zeca Pagodinho, por exemplo, é filmado em momentos de gravação ao lado de Beth, mas o que salta aos olhos é o resgate de um ensaio fotográfico em que ela delicadamente penteia os cabelos de Zeca, em um gesto quase maternal.
Já Jorge Aragão aparece em diferentes momentos em trocas profissionais e de carinho, bem como Arlindo Cruz, dois nomes que cresceram profissionalmente após a chancela de Beth. A artista tinha essa marca de gravar compositores novos e alavancar suas carreiras e isso vai se repetir em diferentes momentos do documentário.
A narrativa de “Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho” é bastante fluida e não há uma linha específica da história, mas acompanhamos recortes de diferentes momentos. Vemos o início da carreira de Beth, a gravidez e o nascimento de Luana Carvalho, sua relação direta com o Cacique de Ramos e sua atuação política intensa. Esse último tema, aliás, rende momentos únicos no filme. Beth sempre foi uma figura alinhada à esquerda e atenta as questões trabalhistas; ela sempre foi uma artista que entendia o seu papel dentro da classe artística e que batalhava pela melhor remuneração de seus colegas de classe, bem como pela valorização das culturas populares.
No documentário vemos a atuação de Beth no movimento das Diretas Já, acompanhamos seu contato com políticos emblemáticos como Brizola e vemos até uma viagem feita em comitiva artística brasileira para Cuba. Por lá, Beth filma com sua câmera portátil o seu encontro com Fidel Castro. Vemos ela e Aracy Balabanian atentas em conversa com o líder comunista e há até o registro de Beth presenteando Fidel com uma nota de um real.
Beth Carvalho é uma artista tão fundamental que uniu e conectou tantos artistas que é emocionante ver o quanto o filme de Pedro Bonz consegue transmitir isso na tela. Beth era querida por onde passava, era uma mulher apaixonada pelo samba, pela festa, pelos botequins, mas também era uma pesquisadora e profissional extremamente séria, que se dedicava ao seu ofício com afinco e amor; e ainda assim achava tempo de registrar a história do samba da qual ela era uma propulsora, pois ela sabia bem que os bambas que estavam ao lado dela estavam fazendo história.
Com sua câmera em mãos, ela faz perguntas para músicos e cantores, ela brinca com eles, demonstra afeto e registra uma geração de artistas que modificou a nossa relação com o samba. Beth acreditava fortemente na cultura brasileira e na força dos nossos artistas, tanto que no filme ela diz “o Brasil precisa de mais brasilidade”, ao que um repórter questiona o que seria essa brasilidade, ela responde “negritude”, pois ela repete diversas vezes durante o filme o quanto o Brasil precisa se entender enquanto um país negro e de cultura negra.
E essa figura brasileira e de olhar atento para o Brasil ainda é uma artista que reverbera no público. Na sessão em que assistimos ao filme, se ouvia a respiração ofegante da platéia que se debulhava em lágrimas nos momentos mais delicados, mas também se ouvia aquele coro baixinho que se formava em cada canção tão marcante. Ao final da sessão, uma salva de palmas, enquanto os créditos subiam ao som de “Vou Festejar”.
É isso, início de fevereiro, primeiro ano que teremos oficialmente Carnaval de novo nas ruas, e uma chuva de verão havia caído em São Paulo pós sessão, pelas calçadas restos de confete e serpentina do Carnaval que está aos poucos dando as caras. E na gente fica a sensação de querer logo correr para um samba, para um bloco de rua, para a avenida, e assim poder sentir de novo aquela mesma energia e paixão que moviam Beth Carvalho.
“Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho” é um filme sobre Beth, mas é também um filme de amor ao samba, é um filme de amor ao Brasil e ao povo que faz o samba. E que coisa linda é saber que existimos de algum modo no mesmo espaço e tempo que artistas como Nelson Cavaquinho, Cartola, Clementina de Jesus, Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Elizeth Cardoso e que todos esses nomes de algum modo se conectam na figura singular de Beth Carvalho.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.