entrevista por Bruno Lisboa
Celso Sim e João Camarero construíram carreiras distintas, mas foram as afinidades musicais e a admiração e devoção pelo samba que os fizeram unir forças que resultaram no disco “Divina Dádiva-Dívida” (2022), lançado em 02 de dezembro, data em que se celebra o Dia Nacional do Samba.
“Divina Dádiva-Dívida” homenageia a cantora Elizeth Cardoso e, também, dialoga profundamente com o Brasil contemporâneo. “Divina é o codinome de Elizeth. Dádiva-Dívida é o Brasil. Divina Dádiva-Dívida é a Elizeth Brasil Cardoso: o Brasil profundo sem fundo, a divina dádiva da esperança que é, também, dívida. A dádiva-dívida como herança”, explica Celso Sim. O álbum aposta num formato intimista, voz e violão, e é composto por 16 faixas, entre elas canções e textos que vão de Noel Rosa a Davi Kopenawa.
Neste bate papo, Celso fala sobre o início de sua relação com a música e com o samba, como se deu a sua aproximação com o violonista João Camareiro, o processo de gravação e seleção do repertório presente no disco, o diálogo com o trabalho de autores como Oswald de Andrade, Grace Passô e David Kopenawa, o samba na contemporaneidade, planos futuros e muito mais.
Antes de falar sobre o projeto em si gostaria que você falasse de sua relação com o universo da música. Em que momento você percebeu que isso se tornaria algo para toda vida?
O universo da música foi percebido, primeiro inconscientemente, como um campo magnético/elétrico que imantava o espaço e o tempo da existência como uma perspectiva de sonho lúcido na minha infância. Quando fui morar em Viena/Áustria, em 1990, com Jorge Mautner (três meses após chegarmos iniciamos uma pequena temporada no Graumann Theater, cantando músicas de Dorival Caymmi e do Mautner) compreendi que a música seria uma travessia sem fim.
E como se deu o encontro entre você e João Camarero? Quais as afinidades foram cruciais para que vocês decidissem dar prosseguimento com o projeto?
Nosso encontro se deu durante a pandemia, numa janela de esperança proporcionada por Fernanda Diamant, uma amiga em comum. As afinidades eletivas foram e são o cancioneiro da eterna guarda, também chamada de velha guarda. A música popular brasileira, o samba, os choros, as valsas e Villa Lobos.
O disco promove uma bela homenagem ao samba, tendo o trabalho de Elizeth Cardoso como ponto central. Por que Elizeth?
João Camarero lançou a senha, Elizeth Cardoso, por causa das nossas afinidades eletivas, das alegrias das influências. Nesse som e sentido, escapar dos sambas seria forçoso demais, sendo a Divina Elizeth uma das mais brilhantes intérpretes do gênero samba. A criação do repertório se deu a partir da canção “Serra da Boa Esperança”, contraditoriamente uma canção que não é um samba, mas foi essa esperança de um Brasil mais bonito que nos levou às outras músicas.
O repertório traz à tona clássicos atemporais como “Luz Negra”, “Chega de Saudade” e “Chão de Estrelas”, entre tantos outros. Como se deu a seleção?
A dramaturgia deste álbum teve início na constatação que a canção, “Serra da Boa Esperança”, é uma declaração de amor ao território, a uma topografia e às gentes e culturas que o habitam. O álbum contém 12 faixas de canções e 4 faixas de poemas, textos, também musicados, comentados pelo violão generoso de João. Além dessas 12 canções, pesquisamos e ensaiamos outras também cantadas pela Divina Elizeth, mas a liberdade é a consciência do limite e nosso limite era gravarmos apenas 12. A partir de um momento, de um núcleo de canções, são elas que decidem quem pode e deve ficar no repertório, e eu e João nos tornamos apenas o meio de expressão.
“Divina Dádiva Dívida” é um trabalho conceitual que muito diz sobre o Brasil atual. Qual o conceito impresso do disco e quais são as intenções que vocês alimentam para com o público?
Esse trabalho é uma homenagem antropofágica à nobreza e singularidade de uma cantora mestra, mulher negra, artística e existencialmente à frente de seu tempo. O conceito, se há, é uma declaração de amor ao Brasil, à complexidade cultural e estética desse país fadado a uma grandeza que parece não caber no presente, mas que insistimos que caiba, que se faça presente no agora, na hora mais agônica e na mais faceira, toda hora é hora de sermos divinos. Que o público possa receber esse Axé como uma vitamina de ressurreição para levantarmos o céu e o sustentarmos, sabendo que tudo é “perigoso, divino, maravilhoso, é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”
Vocês lançaram o disco na data em que se comemora o Dia Nacional do Samba. Como se deu a aproximação de vocês com o samba e como vocês o veem na atualidade?
O samba atravessou e atravessa nossas memórias que são memórias coletivas, da minha família e, provavelmente, da família de João também. A admiração pela obra de Elizeth Cardoso é uma travessia pelo samba, ou melhor, pelos sambas. O samba é como a água, dela você bebe, você se banha, você cozinha, nada, navega, transpira, dança, paquera, trepa e ressuscita. O samba é, os outros são. O samba está vivo na voz, na obra e no corpo de Clementina de Jesus a Ludmilla, de João da Baiana a Mano Brown, De Pixinguinha a Guinga, de Villa Lobos a Elza Soares, de Dorival Caymmi a Criolo, de Garrincha e Pelé a Fabiana Cozza, de Dona Ivone Lara a Rodrigo Campos. Uai.
As faixas do disco são entrecortadas por introduções que citam textos de Oswald de Andrade, Grace Passô e David Kopenawa que, por mais tenham sido escritos em tempos distintos, abordam as agruras do Brasil contemporâneo. Para tanto, qual a importância de trazer à tona os trabalhos desses autores?
Davi, Oswald e Grace são urgências atemporais do Brasil profundo e contemporâneo, do amor=humor, da dádiva-dívida, de futuros que não cessam. Ele(a)s estão presentes como comentários que são pontes de linguagens de arte para embaralhar sentidos e fronteiras.
Quais são os planos futuros? Pretendem excursionar com o projeto?
Planos de volumes de um Brasil mais generoso com a arte e a cultura, para a coexistência do artesanal e do industrial, da delicadeza e da massa, do sublime e da pancada, de muitos horizontes no porvir. Pretendemos excursionar pelo Brasil e pelo planeta, é o mínimo para tanta fome.
– Bruno Lisboa escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Pablo Saborido