texto por Gabriel Pinheiro
Pereira é um jornalista de meia idade. Em Portugal de 1938, ele é responsável pelo caderno cultural do jornal Lisboa. Viúvo, Pereira restringe seu mundo ao que já lhe é conhecido. Os mesmos lugares, as mesmas pessoas, a mesma limonada pedida nos mesmos restaurantes. Estamos na ditadura Salazarista, que dominou o país por 36 anos. Assim, evitando qualquer possibilidade de conflito e de se envolver em questões políticas, o jornalista se mantém alheio a este tópico. Não há espaço para o assunto em seu caderno, onde dominam as traduções de grandes clássicos da literatura francesa, orgulhosamente realizadas pelo próprio. Até que um dia, a chegada de um jovem de ideais revolucionários balança a pacata trajetória do protagonista. Publicado em 1994, “Afirma Pereira” (editado no Brasil pela Estação Liberdade) é o mais conhecido romance do italiano Antonio Tabucchi. O trabalho ganhou uma adaptação aos quadrinhos pelo francês Pierre-Henry Gomont, lançada pela Editora Nemo com tradução de José Hartvig de Freitas.
Além dos clássicos franceses, Pereira também é interessado nas abstratas questões do espírito e da ressurreição da alma. Enquanto divaga, ele parece não perceber o domínio do fascismo sobre o cotidiano de seu país. É o que lhe diz um padre amigo, quando o protagonista o procura, angustiado, após ler uma inusitada reflexão sobre a morte e a ressurreição em um artigo de um tal Francisco Monteiro Rossi. “Pereira, meu amigo. Não me leves a mal o que vou te dizer. Mas em que mundo vives? Sabes que ontem mataram um homem no Alentejo? E há greves por todo o país. Esquece lá essa história da ressurreição da carne… Tu é jornalista, Pereira…”.
Francisco Monteiro Rossi é um jovem freelancer que Pereira, fascinado pelas questões levantadas por ele no artigo lido, contrata para que escreva obituários de importantes personalidades para o caderno cultural do jornal Lisboa. Mas o que o chefe, então, passa a receber são textos elogiosos a declarados inimigos do fascismo. Se a estupefação, de início, toma conta do espírito de Pereira, pouco a pouco ele acaba se envolvendo com as questões e lutas defendidas por Rossi e por sua enigmática companheira.
Passada num verão escaldante em Portugal na década de 30, a história ganha cores e tons saturados, onde predominam um laranja solar e um belo azul, que toma conta de um céu sempre sem nuvens. Pierre-Henry Gomont reconstrói a capital Lisboa de maneira vibrante e com dedicada atenção à sua arquitetura.
No processo de tomada de consciência política de Pereira, acompanhamos detidamente o seu conflito interno, uma experiência dolorosa e confusa. É bonito como este romance existencial é traduzido para a linguagem dos quadrinhos pelo artista francês. Mais do que uma mera transposição, ele interpreta a obra com os códigos da nona arte, possibilitando que adentremos o íntimo do personagem e os diversos “eus” que ali dentro batalham entre si, cada um com seus fantasmas e medos, seus desejos e convicções. É a complexidade da alma humana traduzida de maneira tocante, tanto em texto quanto em imagem. Que belo encontro o de Pierre-Henry Gomont com a obra de Antonio Tabucchi.
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– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.