texto por Leonardo Vinhas
Fotos de Joilton Chagas
Existe um Brasil do ódio, da intolerância, dos ânimos acirrados, da truculência travestida de defesa da liberdade, do desprezo à cultura e da miséria emocional. É um Brasil real – assim sabemos porque vivemos nele diariamente – mas felizmente esse não é o único Brasil que existe. Pelo menos essa era uma conclusão factível para quem estava em Paraíso do Norte (PR) no dia 26 de novembro. Ali,na praça Santos Dumont, Odair José apresentava seu show para cerca de 4 mil pessoas como parte da 12a edição da Festa das Nações do município.
O que acontecia ali era uma “festa popular” como há muito tempo não se vê na maioria das regiões do país. Nenhuma ocorrência policial nos três dias de evento, nenhuma manifestação agressiva de ódio político. Não era um paraíso idílico, utópico: era simplesmente um convívio pacífico, seguro e tranquilo. Você se lembra da última vez que viveu isso sem ter a sensação de estar em uma bolha?
Paraíso do Norte é uma cidade curiosa. Na eleição presidencial, Jair Bolsonaro teve a maioria dos votos válidos da cidade. Porém, os últimos quatro mandatos da administração municipal foram do PT. O prefeito atual, Beto Vizzotto, é uma das lideranças petistas mais conhecidas na região, e está em seu terceiro mandato na Prefeitura. Ainda nesse mesmo novembro, a cidade foi campeã nacional do Prêmio Band Cidades Excelentes na categoria Governança, Transparência e Eficiência Fiscal para cidades até 30 mil habitantes (Paraíso tem 14 mil).
Se o apego nacionalista e direitista da população não os impede de reconhecer os méritos de uma gestão inequivocamente de esquerda, isso já seria motivo suficiente para estranhamento no Brasil descrito no primeiro parágrafo. Mas a cidade ainda se destaca pelos investimentos em cultura e educação – a festa em questão, aliás, era em benefício de nove escolas públicas da cidade, com toda a renda das barracas (tematizadas por países) revertida para a instituições de ensino responsáveis.
E no palco, estava um dos maiores compositores populares que esse país já viu. Embora tenha sido retirado do gueto “brega” ao qual foi relegado durante anos, Odair José ainda não tem um reconhecimento proporcional à sua obra. Mas o fato é que poucos músicos têm um arsenal tão grande de hits que conseguem falar diretamente com os aspectos mais inconfessáveis da paixão tupiniquim. E embora o setlist não tenha sonegado sucessos, muitos ainda ficaram de fora (“porque Martinho da Vila me ensinou que o artista sempre tem que deixar o público querendo mais no final do show”, me disse Odair algumas horas antes da apresentação).
Odair abriu a noite com “Dia 16”, a canção que marcou o início da sua guinada à fase roqueira atual, e a emendou com “Hibernar”, do excelente “Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio” (2019). “Essa Noite Você Vai Ter que Ser Minha” chega na sequência, resgatando a familiaridade que a obra de Odair tem com o público, e consolidou o ritmo que se estabeleceria ao longo das 27 canções “e meia” que fizeram parte do setlist.
Ninguém tem dúvida de que um show de Odair José não pode prescindir de canções como “Vou Tirar Você Desse Lugar”, “Deixe Essa Vergonha de Lado” e “A Noite Mais Linda do Mundo”. Mas elas convivem muito bem com material mais recente, como “Carne Crua” e “Rapaz Caipira”, e também com as canções do controverso “O Filho de José e Maria” (1977). Três faixas do disco foram apresentadas: “Que Loucura”, “Não me Venda Grilos” e, claro, “Nunca Mais”. Nessas, em especial, se percebe a qualidade da banda que acompanha Odair: nem os (poucos) fãs mais empedernidos e conhecedores da obra do cantor sentiram falta do Azymuth, responsáveis pelo instrumental do disco em questão.
A banda é um grande trunfo do show de Odair. Ele finalmente parece encarnar a figura do “cara com a guitarra”, que era o que ele, inspirado por Peter Frampton, desejava com o disco de 1977, mas o faz secundado por um time excepcional, que inclui uma segunda guitarra (a cargo de seu filho, Junior Freitas), baixo, bateria, teclados, trombone e trompete. O time traz arranjos que atualizam a sonoridade sem desrespeitar as melodias originais. São mudanças sutis, mas que fazem toda a diferença, principalmente em “Que Saudade de Você” (uma das melhores canções do músico), “Mande Nem que Seja um Telegrama” e “Eu, Você e a Praça”.
Mesmo com o público dançando e cantando junto, Odair consegue brincar com os clichês de sua fama (“se as pessoas estiverem perguntando pra vocês ‘mas quem é Odair José mesmo?’, podem falar que é aquele cara da ‘música da pílula’”), elogiar peculiaridades da cidade e até encaixar um trecho de “Vida que Não Pára” de improviso para atender ao pedido de um fã que viajou mais de 700 km para ver o show. Mais do que ser funcionário da própria fama, o que ele faz é mostrar conhecimento e respeito do público – fator que faz com que conquiste novos fãs antes mesmo da apresentação chegar ao fim.
E de fato, muito antes de todo o centro de Paraíso do Norte entoar os versos “Cadê Você?”, encerramento obrigatório de seus shows, já se viam jovens, adolescentes e até crianças (!) dançando e arriscando cantar trechos de letras que até então desconheciam. Seja valendo-se de formatos mais inclinados ao pop, ao folk, ao rock, ao country ou até ao blues, Odair José é, definitivamente, um músico popular.
Aliás, não é à toa que popular” é uma palavra que aparece várias vezes neste texto. A Festa das Nações de Paraíso do Norte era, definitivamente, “do povo”, e é com “o povo” que Odair José se comunica, e é sobre “o povo” que ele escreve. Só que “o povo” somos nós, e se é verdade que (felizmente) não somos uma massa homogênea, também é verdade que não somos tão diferentes assim, e canções que falam sem rodeios das coisas que vivemos podem incomodar e causar polêmica, mas podem também tocar em algo bastante profundo e verdadeiro, mesmo que escondido sob camadas de hipocrisia.
E naquela noite, “o povo” não estava se odiando para defender aqueles que os desprezam. “O povo” estava rindo, dançando, comendo (espetacularmente bem, vale dizer), namorando, se divertindo. Enfim, vivendo, e muito bem. Ali, naquele momento, estávamos vivendo a noite mais linda do mundo.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) é produtor e assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.